Pintores mundialmente reconhecidos como Alfredo Volpi e Cândido Portinariestavam entre os 85 artistas da exposição “Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira” que deveria estar aberta ao público até 8 de outubro, no Santander Cultural, em Porto Alegre. Porém, o local fechou as portas para a visitação após protestos.
Foi a primeira exposição de arte com temática queer da América Latina. Contava com 264 obras de 85 artistas brasileiros, mostrando mais de um século das artes plásticas e seu relacionamento com o universo LGBTQ.
Segundo o Santander, a exposição recebeu muitas críticas. “Entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo”, disse o banco em nota na tarde deste domingo. “Pedimos sinceras desculpas a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra”, afirmou o Santander.
A acusação de apologia à pedofilia foi descartada pelo promotor da Infância de Porto Alegre, Júlio Almeida, em entrevista à rádio Guaíba (RS). E você? Qual é a sua opinião? Confira algumas telas.
Veja a seguir algumas das obras com a explicação, conforme o catálogo da exposição.
ADRIANA VAREJÃO: Cena de interior II, 1994
O óleo sobre tela de Adriana Varejão era uma das peças de abertura da exposição. Foi alvo de ataques virtuais, mas de 20 anos depois de ser pintada pela artista. Segundo o catálogo da mostra, a peça apresenta um drama erótico e sua “intensidade histórica, conceitual e estética é exemplar da força da imagem que é possível encontrar nessa exposição”.
ALFREDO VOLPI: São Sebastião (s.d.)
O desenho de São Sebastião é feito levemente sobre papel, como se a imagem pudesse desaparecer. “Como um fantasma, os traços leves deixam-lhe o corpo que lhe foi flagelado reencontrar, na natureza, a matéria da carne que lhe foi atacada pelo desejo e pela perversão”, explica o catálogo de Queermuseu.
ANGELINA AGOSTINI: Sem título, 1910
Com 107 anos, essa obra em carvão sobre papel, de Angelina Agostini, traz a figura de um homem nu posando para a artista.
BIA LEITE, Travesti da lambada e deusa das águas (2013)
BIA LEITE: Adriano bafônica e Luiz França She-há (2013)
Essas duas obras de Bia Leite foram duramente criticadas por quem se organizou para censurar a exposição. “Bia talvez seja uma das poucas artistas brasileiras a enfrentar com desenvoltura e coragem esse tema tabu, que é a homossexualidade na infância e o portentoso sofrimento que crianças atravessam na fase escolar e no início da adolescência. A artista produziu essas pinturas a partir da combinação de fotografias das crianças retiradas do Tumblr www.criancaviada.tumblr.com, onde são postadas fotografias da infância dos próprios usuários LGBT com comentários”, explica o catálogo da exposição.
CIBELLE CAVALLI BASTOS: Is a Feeling, 2013
Cibelle reproduz a figura de uma criança comendo e segurando uma tigela em que se lê a palavra “love”. Sobre seu rosto, um sticker de arco-íris. Com uma linguagem que lembra a publicidade, ela apresenta “o afeto como interferência na forma de um ‘ruído conceitual”. “O ingresso de tal característica na realização desse trabalho perturba a realidade material da obra, cujos princípios não toleram características subjetivas dessa natureza”, diz o catálogo da exposição.
EDUARDO CRUZ: Truque I, 1980
A obra em terracota integra o acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS). É uma “caixa” fechada, que dá a noção de aprisionamento do corpo.
EFIGÊNIA ROLIM: Trasque traque, 1991
Feita de vários materiais, a obra produz som se ativada pelo espectador. A artista, de 86 anos, é autora do poema “Será que ela é normal”, também citado em Queermuseu.
FELIPE SCANDELARI: Last Resort, 2016
A obra de Scandelari traz uma madona carregando um chimpanzé e é marcada por itens iconográficos que remetem desde a pintura do século 16, como a caveira, até elementos contemporâneos, como uma galinha azul.
FERNANDO BARIL: Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, 1996
FERNANDO BARIL: Halterofilista, 1989
As obras de Fernando Baril, de acrílico sobre tela, também irritaram os militantes do MBL do Sul, sobretudo a que traz uma imagem de Jesus com vários braços, num cruzamento com a deusa Shiva. Essa obra tem 21 anos. Já a Halterofilista, de 1989, foi feita no auge do culto ao corpo pelo fisioculturismo, dos anos 80. “E, simultaneamente, no ápice da epidemia HIV/AIDS com seu ingresso na comunidade gay, determina um longo período de estigmatização do corpo masculino como lugar da doença”, explica o catálogo da exposição.
FLÁVIO DE CARVALHO: Retrato de Sangirardi Junior, 1939
Na aquarela sobre papel de Flávio de Carvalho, escorre da boca do homem retratado um fio de baba. “A cabeça paira no ar, sem um fundo sobre o qual sustentar-se. Não se sabe, por ora, se ele é o canibal ou o canibalizado”, diz o texto que explica a aquarela. “O que é bom para os outros não é para mim”, disse o artista, que morreu em 1973, deixando um legado revolucionário nas artes, com grande destaque nos anos 30.
LEONILSON: Agora e as oportunidades, 1991
De uma coleção particular, Agora e as Oportunidades é uma das obras de Leonilson escolhidas para a exposição. O artista tem grande reconhecimento no exterior por ter uma arte marcada pelas questões LGBTQ. Morreu de aids em 1993.
LYGIA CLARK: Cabeça coletiva, 1975
Esta obra em materiais diversos é uma das escolhidas pelo curador Gaudêncio Fidélis para marcar a relevância da artista na discussão sobre o canibalismo cultural. Outra obra da artista, também de reconhecimento internacional, é a “Baba Antropofágica”. A obra foi incluída recentemente na décima edição da Bienal do Mercosul e “trata a diversidade como princípio geracional”, como diz o catálogo da exposição.
MARCOS CHAVES, sem nomes, 2001
Da série Ecléticos, as fotografias de Marcos Chaves foram produzidas para o Castelinho do Flamengo, no Rio, em 2001, uma edificação construída em estilo eclético. Traz elementos que transitam entre a arte decó, a noveau e o neogótico francês. “Essas intervenções cosméticas que o artista realizou em elementos arquitetônicos do lugar e que depois foram ‘congeladas’ através da imagem fotográfica ativam outro princípio em operação: aquele das inclinações de gênero do cenário arquitetônico e de sua atmosfera”, informa o texto do catálogo.
MÁRIO RÖHNELT: Sem título, 1983
Destituídos de contexto, os objetos retratados no desenho de Röhnet “flutuam inadvertidamente”. Os organizadores da exposição explicam que a obra foi produzido em “um período em que a cultura do fumo vivia em sintonia comum a erotização queer da oralidade, em que a forma fálica do cigarro ingressa no universo popular uma intensidade inimaginável”.
MILTON KURTZ: Ataque Automático, 1985
Ataque Automático (1985) conduz para o universo pop da ficção científica e da cultura queer. “Dos ‘buracos negros’, dos ‘pontos cegos’ ao universo transgender, o protesto como modo de transgressão assinala a importância e o adiantado dessa obra no meio local, em meados da década de 1980, quando o contexto era ainda mais conservador, embora estejamos vivendo um tipo de conservadorismo programático. Se, na época, parte dele se devia justamente à ignorância, hoje esse conservadorismo opera a partir do conhecimento e de sua própria instrumentalização”, aponta o texto do catálogo, produzido antes da censura da exposição.
NELSON BOEIRA FAEDRICH: Oxumaré, 1980
Do álbum “Deuses do panteão africano: Orixás”, esta obra traz um dos orixás, Oxumaré, e o arco-íris como um “dispositivo semântico” relacionado ao tema LGBTQ.
NINO CAIS: Sem título, 2009
O próprio artista se fotografa com adereços e apresenta duas imagens de si mesmo, que invocam, segundo os organizadores da mostra, uma entidade supostamente contemporânea, “cuja dimensão ficcional atribui uma dúvida dramática à vocação do retrato”.
ODIRES MLÁSZHO: The Dynamics of Change, 2011
Feita para uma capa de livro de mesmo nome, a obra traz o “duplo”, temática bastante abordada na exposição. “O duplo como espelhamento e/ou complemen- taridade”, diz o catálogo.
OTTO SULZBACH: Sem título, 2011
Feita com vidro e resíduo de borracha industrial, a obra é composta de duas peças. Faz parte do acervo do MARGS.
PAULO OSIR: Imigrante Lituano, 1930
O óleo sobre tela de 1930 traz um menino cego de um olho. “Com o olho direito cego, que coincide justamente com o lado mais escuro da pintura, e olhando em direção ao espectador com o outro, é visível sua tristeza, demonstrada pela posição das mãos e pela leve curvatura do corpo”, descreve o catálogo.
PEDRO AMÉRICO: Busto de Jovem, 1889
A obra de Pedro Américo, um óleo sobre cartão, faz parte do Acervo Pinacoteca Rubem Berta, de Porto Alegre. “O caráter idealizado dessa pintura não dissimula uma inclinação para a sexualidade erotizada da juventude, cuja construção cultural está subjugada ao olhar do pintor, refletida na instrumentalização hierárquica da atribuição de erotismo do corpo. Se há um legado trazido pela contemporaneidade, foi livrar-nos do obscurantismo do olhar e atribuir uma visão crítica ao modo como vemos as imagens”, afirma o catálogo de Queermuseu.
ROBERTO CIDADE: Cristo Nosso de Cada Dia, 1978
O Cristo crucificado está presente em diversas obras da exposição. Nesta peça em ferro soldado de Roberto Cidade, tubos atravessam seu corpo e o pênis está ereto. Diz o catálogo: “O pênis ereto atribui-lhe uma condição humana, distante das imagens de representação de Cristo, comumente disfarçadas com sua genitália coberta. As correntes que lhe prendem o corpo reposicionam a figura em um universo da sexualidade e do prazer, embora saibamos que esses dois aspectos da dimensão humana (prazer e tortura) muitas vezes andaram (e andam) juntos”.
RODOLPHO PARIGI: Libélulis Corpus, 2014
As “asas” de uma libélula são conduzidas por um pênis em movimento ascensional. Foi feita com óleo, caneta permanente e colagem sobre papel.
SANDRO KA: Reconhecimento, 2008
Do acervo do MARGS, a obra de Sandro Ka fala sobre a identificação. São duas figuras de veados, uma de plástico e outra de porcelana. Um brinquedo e um objeto de decoração. Os dois objetos se olham, mas apontam para a diferença como complementar.
SILVIA GIORDANI: La Femme 4, 2011
A fotografia de Silvio Giordani traz uma menina com roupa de adulto, ensaiando um passo de dança. “A gestualidade notadamente queer dessa menina, com seu vestido de cores metálicas que acumulam as cores do arco-íris na extremidade e repousam sobre o piso, reverbera em diversas outras obras nesta exposição”, explica o catálogo.
SUZANA LOBO: Poluída at certo ponto, 1971
Um mulher nua em meio a um cenário cromático recebe um facho de luz. “O título da pintura pode referir-se ao universo ‘contaminado’ da mercadoria e da comunicação, visto que esses ‘faróis’ projetam sinais e parecem consumir a identidade do sujeito”, diz o catálogo.
TELMO LANES: O Buraco, 2004
Foi posicionado na mostra do Santander como uma imensa cratera sobre a qual gravitam outras obras que falam em “buraco negro”. Um “buraco negro da história da arte e de seu processo de institucionalização. Afinal, o olho que vê é o mesmo que criminaliza a inclusão, deixando de lado uma parte considerável da produção artística, especialmente aquela que não se enquadre nas prerrogativas canônicas”, explica o catálogo.
Texto de Tatiana Farah, Publicado originalmente em BuzzFeed News – site que recomendamos à visita. Todas as fotos foram cedidas à reportagem da BuzzFeed News pela Queermuseu