Jovem, cega e criada no interior de goiás. Esta é Maíra Valência, personagem interpretada por Sophie Charlotte na novela Todas as Flores, produzida pela Globoplay, o serviço de streaming da Globo. A novela foi muito aclamada pelo público desde sua estreia e avaliada como “Novelão”. Com 5 capítulos liberados semanalmente, a primeira temporada da trama teve início em outubro de 2022 e possui 45 episódios.

Logo que a história escrita por João Emanuel Carneiro foi ao ar, trazendo como principal protagonista uma Pessoa Com Deficiência Visual (PCDV) muitos burburinhos pipocaram nas redes sociais. Eu, enquanto jornalista e jovem cega, não poderia ficar de fora dos debates e assim, tomei a liberdade de escrever este artigo em primeira pessoa comentando minhas impressões a respeito da trama e do que ela representa e deixa de representar à comunidade PCD.

Que me perdoem os fãs de Sophie Charlotte com sua personagem Maíra, mas não, ela não me convence, não me representa, não representa uma pessoa com deficiência visual. Penso que a proposta do autor seja mostrar que pessoas com deficiência vivem uma vida normal quando estas têm ferramentas e oportunidades para desenvolverem sua autonomia, mas talvez ele não tenha sido muito assertivo ao escolher uma atriz que não é uma pessoa com deficiência visual, o que certamente existe, como mostra o exemplo na própria trama com Camila Alves, que interpreta Gabriela.

Maíra é tão pouco convincente que até quem não enxerga, pode vislumbrá-la usando a visão em muitas cenas. No capítulo de abertura, por exemplo, há uma cena em que Maíra sai de um rio. Ela sai sozinha da água e caminha por uma vegetação. Comparei com vivências individuais e vivências de PCDS próximas a mim, confesso e conclui que jamais algo assim aconteceria na vida real. Pessoas com deficiência, em especial deficiência visual, necessitam conhecerem muito bem o local em que estão andando para que consigam se locomover desacompanhadas. E na melhor das hipóteses, há um piso tátil para nos direcionar.

A sexualização da personagem já no primeiro episódio, também foi outro ponto que me incomodou. Para quem está assistindo com audiodescrição, a cena é narrada como a personagem estando vestida apenas com calcinha e sutiã bege. E para quem enxerga, vista de longe, é quase como se Maíra estivesse de fato nua. Só quando a imagem vai se aproximando da tela vem a percepção de que ela está usando peças íntimas.

Nesse ponto do capítulo, fiquei na dúvida se a ideia era trabalhar a sexualidade de pessoas com deficiência de maneira natural ou se seria algo mais voltado para o fetiche que algumas pessoas sem deficiência tem com quem tem deficiência, os chamados devotes. Devotes são indivíduos que sentem atração por corpos com deficiência ou por algum aspecto ligado a essa condição e/ou a sua vulnerabilidade em relação à autonomia.

E o que mais me intrigou em Maíra, é que ela não tem uma crisezinha existencial que seja. Um dia ruim por conta do capacitismo. Não tem, sequer uma revolta de leve em relação à sua condição. Nenhuma. Maíra é resignada, complacente, boa o tempo inteirinho. O típico desenho que está no imaginário da sociedade a respeito de PCDS. Difícil demais engolir, sabe? A vontade que dá, às vezes, é sacudi-la e gritar: acorda, minha filha, o mundo não é essa Coca-Cola toda não.

O grande gancho para a segunda temporada do enredo, é uma cirurgia que Maíra realizará no último capítulo. Tudo indica que ela voltará enxergar e essa busca pela visão tem sua razão de ser. Entretanto, mais uma vez, penso que João Emanuel perdeu a chance de tornar a personagem um ícone da realidade de mais 500 mil brasileiros com deficiência visual total.

Por que Maíra não pode executar os seus planos de vida, seus sonhos… sendo uma pessoa cega? Qual a dificuldade de lidar com corpos PCDs? Ora, o milagre da inclusão, da aceitação das diferenças, da compreensão de que a deficiência não é uma doença e sim, um jeito ser, com certeza, sempre será mais possível do que o desserviço da necessidade neurótica de tentar, a todo custo, exigir por meio de “curas” transformar PCDs em não PCDs.

Texto da jornalista Juliana Santelli, jovem, negra, PCD. Colunista do Portal Raízes, ouvinte de podcast nas horas vagas, leitora do que chama a sua atenção. Autora do livro: “Entre Vistas” sobre a maternidade solo na sociedade brasileira pós-moderna (prelo).

Capa #paratodosverem: fotografia da jornalista Juliana Santelli. Ela é uma jovem negra, o cabelo está com tranças lilases abaixo do ombro. Ela está usando um vestido vermelho, está sentada com a mãos levemente postas nos joelhos, tem um leve sorriso e uma expressão facial altiva. Ao seu lado há uma imagem da personagem Maíra da novela Todas as Flores. Maíra é uma jovem branca e está de pé, usando uma roupa toda branca e uma bengala.






Juliana Santhele é jornalista, jovem, negra, PCD. Colunista do Portal Raízes, ouvinte de podcast nas horas vagas, leitora do que chama a sua atenção. Autora do livro: "Entre Vistas" sobre a maternidade solo na sociedade brasileira pós-moderna (prelo).