A cada dia, a poesia tem contrariado paradigmas históricos e se consolidado como a arte mais praticada de todas no Brasil. Tal constatação decerto não é apenas do autor destas palavras, mas um lugar-comum àqueles que veem uma sorte de blogs, autores e publicações com este fim surgirem todos os dias; o sentido literal da palavra poesia está sendo aplicado: ela vem do grego poiesis, ou seja, “fazer”.
Décio Pignatari em seu livro O que é Comunicação Poética, logo em sua primeira página, afirma que “A poesia é um corpo estranho nas artes da palavra. É a menos consumida de todas as artes, embora pareça ser a mais praticada”. Considerando que a obra do poeta concretista foi publicada no século passado, esta referência se mostra, antes de tudo, um prelúdio. A afirmação citada, a princípio, parece não ter certa lógica: um grande número de pessoas escreve para si, afinal? É por este ponto que aqui se começa procurar um lugar possível para tantas problemáticas.
A modernidade trouxe consigo um (anti-)movimento de perda de identidade, por meio dos contingentes crescentes, dos disparates burocráticos, da dissolução e apropriação culturais, do anonimato indissolúvel nas massas. Como uma resposta a tais arbitrariedades, nada mais natural do que uma corrida para distinções pessoais de todas as espécies: de grupos ideológicos à própria arte como forma de grito, choque e expressão; (a forma como isto ocorreu foge à pauta e será um assunto postergado). “Os artistas são as antenas da raça”, disse o poeta Ezra Pound, o número crescente de artistas já se justifica no imenso número de mensagens a serem captadas atualmente, e ainda com o respaldo da liberdade e com a possibilidade do autoral.
Até então, apenas generalizações foram abordadas superficialmente aqui. O ponto de especulação é: por que a poesia?
Primeiramente, o aval para o abandono gradual das formas melopaicas (ritmo, rima, pé, estrutura), ao passo em que se diversificam as formas logopaicas (todo assunto é plausível) e fanopaicas (toda forma de escrita é correta e viável) nos leva a uma acessibilidade aparente, e ratifico, apenas aparente, da arte poética àquele que deseja dizer algo com o pretexto da sofisticação estética. A poesia aparenta ser uma arte de pouca bagagem teórica e, além disso, uma arte de curtos tempo e espaço, sendo a ruptura e a licença poética – a famigerada – guarda-chuvas muito amplos para possibilidade de expressão.
Mais substancialmente, um fator tão interessante quanto ponderável é uma das características mais marcantes da poesia: subjetividade. Raros momentos da história moderna desta arte passaram ao largo da visão de mundo do “eu”. A poesia tem um aspecto autoral muito marcante, sendo que o homem-poético é, em geral, impotente perante o mundo ou, ainda, suscetível às arbitrariedades que lhe são impostas: assumindo-se assim, ele pode compreender uma verdade mais ampla. Assim, enfim, o poeta pode fazer sua análise de tempo, sob os panos do onirismo e da possibilidade de invenção linguística. O sujeito prevalece na poesia de uma forma muito mais contundente do que na prosa, apesar dos Guimarães Rosa e Campos de Carvalho, cuja escrita, sintomaticamente, é descrita como “poética”.
Os dois últimos parágrafos representam hipóteses, é válido lembrar. Partindo delas, há ainda a necessidade de se discutir outro aspecto da frase de Pignatari previamente citada: A poesia é “a menos consumida de todas as artes”. Há muitas variáveis envolvidas nisso, mas uma será destrinchada: nem toda a escrita poética se faz com o intuito de se continuar uma história da poesia, ou seja, nem tudo que é produzido é feito com a consciência do que significa o próprio fazer.
Muito se fala hoje em sobrecarga de informação, mas pouco se faz para atuar nisso. Muito é dito sem que antes haja atenta audição, muito é escrito sem que antes haja atenta leitura. É neste ponto que se distinguem os dois tipos de poeta: os que só escrevem o que precisam dizer e os que querem escrever poesia. Os primeiros seriam chamados por Pound, em sua contundência habitual (Pound-Tsé-Tung, diria Waly Salomão) de “atiradores de moedas”; mas não cabe a mim neste momento dizer o que é qualitativamente válido ou não, pois a isso cabe uma visão privilegiada do tempo. Esta divisão define apenas o âmbito da necessidade de subjetividade e o âmbito da arte como uma finalidade, com invenção de língua, diálogo com o passado e bagagem teórica e prática.
Sendo assim, o que se tem é um grande número de poetas e um número desproporcional de leitores de poesia, ainda que seja algo eminentemente crescente.
Sem embargo, nunca a abundância de poetas seria prejudicial à poesia, antes disso, é algo que leva a uma ampliação de paradigmas prováveis. No entanto, há, e sempre há, efeitos colaterais. Uma verdade a ser dita até mesmo sobre parte da poesia “consciente-de-si” criada hoje em dia é sua grande contaminação com a sede de subjetivação: muitas vezes, as temáticas não pretendem fazer algo senão tornar o próprio homem urbano do aqui-e-agora um ser distinguível, chegando-se ao extremo de parecer que certas mensagens são feitas única e exclusivamente para aquele que as escreveu ou que têm certo tempo de validade.
O fato é que o crescente número de interessados, sendo ou não pelos fatores aqui sugeridos, aliado à desmistificação proposta à arte, faz com que a poesia seja um novo nicho de mercado. Ainda que poucos consumam poesia, ver Leminski e Ana Cristina César entre os livros mais vendidos, ou Carlos Drummond de Andrade sendo estudado para o vestibular mostra que há uma recolocação da poesia em relação ao grande público e às grandes editoras. Um círculo vicioso: maior número de interessados consome poesia, que é propagada pelos grandes meios e que atrai novos interessados.
Mas para que isso tudo se intensifique, é necessário que a poesia seja considerada um fim, não um meio. Uma arte, não um produto.
O mais positivo disso tudo, por hora, é a popularização da arte que nosso período inaugura, junto ao debate em um âmbito não acadêmico, vide este artigo ou a plataforma onde está este artigo; nosso período engendra possibilidades de ampliação e de diálogo entre plataformas. O crescimento de número daqueles que fazem é o provável crescimento do número daqueles que estudam, ouvem, debatem e, sobretudo, amam. E o que seria da arte, afinal, do vorticismo ao teatro clássico, se não houvesse um inerente e incomensurável amor?
Texto de Todos nós é mais ninguém – extraído da revista Obvious