Não são as birras, as pirraças, os gritos, os gestos agressivos, as palavras ofensivas… que transformam as crianças em pequenos tiranos, é a infantolatria, essa coisa pós-moderna que alcançou os lares, transformando a vivencia entre pais e filhos numa “pedocracia”, numa ‘ditadura’ de crianças que não aceitam ouvir ‘não’, querem tudo do jeito e na hora delas. Mas em que momento essas crianças começaram a ser as donas da casa? A psicanalista Marcia Neder, autora de “Déspotas Mirins, o poder nas novas famílias”, da Zagodoni Editora, em entrevista ao “Saia Justa”, chama o fenômeno de pedocracia e nos dá algumas orientações. Fizemos a transcrição de alguns trechos. Confira:

É mais fácil deixar a criança ser rei do que educá-la

“A pedocracia é alimentada pela idealização da maternidade. Qual é o ideal que temos da maternidade? O de uma mãe que abre a mão da sua vida para se dedicar ao filho. Por que as mães embarcam na idealização, por que se sentem santas mães proibidas de ter raiva, de perder a paciência? Aí vem uma culpa fenomenal. Acima da dor dela, tem o que ela aprendeu, que é a suprema felicidade e bem estar do seu filho”, explica a especialista.

Segundo ela, na cultura atual de idolatrar a criança, os pais têm uma necessidade grande de serem amados pelos seus filhos. “E eles dizem que ‘se não dermos alguma coisa a eles, eles ficam chateados e dizem que não amam a gente’. É uma inversão total de valores”, reforça Neder.

“É mais fácil deixar a criança ser rei. É mais fácil do que aguentar o chilique. Dá trabalho educar. Para evitar isso é bem claro: estabelecer quem é pai e quem é mãe, quem é adulto, e quem é a criança. Se você não estabelece desde o início, tentar estabelecer depois fica complicado”, sugere.

Infantolatria: a criança no trono

“O processo de mudança nos conceitos de família iniciado no século 18 por Jean-Jacques Rousseau chegou ao século 20 com a ‘religião da maternidade’, em que o bebê é um deus e a mãe, uma santa. Instituiu-se o que é uma boa mãe sob a crença de que ela é responsável e culpada por tudo que acontece na vida do filho, tudo que ele faz e fará. Muitos afirmam que a mulher venceu, pois emancipou-se e foi para o mercado de trabalho, mas não: é a criança que entra no século 21 como a vitoriosa. Esta é a semente da infantolatria”, elucida a especialista.

Em poucas palavras, Marcia Neder define infantolatria como “a instituição da mãe como súdita do filho e o adulto se colocando absolutamente disponível para a criança”. E exime a criança de qualquer responsabilidade sobre o seu comportamento: “Um bebê não tem poder para determinar como será a dinâmica familiar. Se isso acontece, é porque os pais promovem”.

Marcia diz ainda que, ao chegar à idade adulta, esse filho cobrará os pais. “Ele olhará ao redor e verá outras pessoas se realizando independentemente dele. A criança que acha que o mundo tem que parar para ela passar não consegue imaginar isso acontecendo e não está preparada para lidar com a menor das frustrações. Em algum ponto, acusará os pais de terem sido omissos”.

Supervalorizar os pequenos e nivelá-los aos adultos é o resultado de uma projeção narcísica dos pais nos filhos

“Isso tudo tem a ver com a vaidade da mãe [dos pais], que considera aquele filho uma parte melhorada dela própria e, por isso, a criatura mais importante do mundo. Em um futuro bem imediato, as reações dos colegas podem fazer a criança perceber que precisa mudar. Ela se comportará com eles como faz com a família e receberá a não-aceitação como resposta. Terá de lidar com isso para ter amigos”, afirma Marcia.

Tudo bem errar na educação dos filhos, tudo bem pedir ajuda

Marcia conta que percebe que as pessoas têm buscado ajuda de especialistas para conseguirem lidar a tirania infantil. Não é errado errar. Não é errado pedir ajuda. Errado é perceber o erro e permitir que ele avance por meses e anos e assim destrua a infância e o futuro de uma criatura.

“Não sou adivinha, mas creio que o novo arranjo familiar, em que os pais também assumem funções na criação dos filhos e as mães seguem carreiras por prazer, vá ajudar a mudar o panorama, assim como os arranjos homoparentais que começam a ser mais comuns”, diz, para complementar: “Creio que todos os comportamentos continuarão existindo, mas temos a obrigação de trabalhar para reverter esse quadro. O filho não é o centro porque quer, mas porque o adulto permite”, conclui Marcia Neder.

Veja aqui a análise de duas obras da Marcia Neder

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