É claro que não posso nem pretendo dizer aos meus leitores como devem entender a minha história. Que cada um nele encontre aquilo que lhe possa ferir a corda íntima e o que lhe seja de alguma utilidade! Mas eu me sentiria contente se alguns desses leitores pudessem perceber que a história do Lobo da Estepe, embora retrate enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas, ao contrário, à redenção.

Busquei um lápis no bolso do casaco, procurei uma folha de papel, encontrei a lista de vinhos, virei-a no verso, e nela escrevi um poema, que dias depois encontrei no bolso, e que dizia era isto:

 Os Imortais

Dos vales terrenos chega até nós o anseio da vida:
impulso desordenado, ébria exuberância, sangrento aroma de
repastos fúnebres.
São espasmos de gozo, ambições sem termo,
mãos de assassinos, de usurários, de santos,
o enxame humano fustigado pela angústia e o prazer.
Lança vapores asfixiantes e pútridos, crus e cálidos,
respira beatitude e ânsia insopitada,
devora-se a si mesmo para depois se vomitar.
Manobra a guerra e faz surgir as artes puras,
adorna de ilusões a casa do pecado,
arrasta-se, consome-se, prostitui-se todo
nas alegrias de seu mundo infantil;
ergue-se em ondas ao encalço de qualquer novidade
para de novo retombar na lama.
Já nós vivemos
no gelo etéreo transluminado de estrelas;
não conhecemos os dias nem as horas,
não temos sexos nem idades.
Vossos pecados e angústias,
vossos crimes e lascivos gozos,
são para nós um espetáculo como o girar dos sóis.
Cada dia é para nós o mais longo.
Debruçados tranquilos sobre vossas vidas,
contemplamos serenos as estrelas que giram,
respiramos o inverno do mundo sideral;
somos amigos do dragão celeste:
fria e imutável é nossa eterna essência,
frígido e astral o nosso eterno riso.

O poema Os Imortais foi extraído da versão  PDF do livro O Lobo da Estepe – de Hermann Hesse – páginas 87/88.

Trecho de “O Lobo da Estepe”

Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de que, no fundo de seu coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um lobo das estepes. As pessoas argutas poderão discutir a propósito de ser ele realmente um lobo, de ter sido transformado, talvez antes seu nascimento, de lobo em ser humano, ou de ter nascido homem, porém dotado de alma de lobo ou por ela dominado ou, finalmente, indagar se essa crença de que ele era um lobo não passava de um produto de sua imaginação ou de um estado patológico. […]

Texto extraído do livro O Lobo da Estepe – de Hermann Hesse – versão PDF, página 27.






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