Foucault nos conta que a modernidade se distingue pela entrada em cena da biopolítica. Agamben especifica a biopolítica por meio dos conceitos de vida nua e homo sacer. A vida nua é a vida exclusivamente biológica, e homo sacer é aquele cuja vida é o ethos em vida, um conjunto de disposições práticas que o fazem ser uma pessoa. A modernidade é o que é à medida que faz de cada homem alguém que vale não pelo seu valor, mas por um novo valor: o da vida nua. Nesse caso, então, surgem perdas e direitos, todos relacionados com o campo biológico, e uma política inteira do bem estar social e/ou do campo de concentração, cujo objeto é a vida exclusivamente animal.

Se a vida biológica é a vida, e então tirar a vida ou não tirar é o que conta como dado último.  É fácil ter leis que proíbam o duelo. Se é a vida nua que é a vida, e se há de protegê-la, o importante é que não exista morte biológica, morte do corpo. O duelo não protege a vida biológica, ao contrário, ele a expõe, mas protege a vida da pessoa, pois é uma forma de não se estar andando por aí desonrado alguém que é arrancado de sua pessoalidade completa, que inclui a assunção ética. Mas, se viver desonrado é possível desde que se viva (biologicamente). Então o duelo perde o sentido e, num segundo passo, pode ser proibido. Foi de fato isso que ocorreu.

Todavia, há ainda entre os homens algum traço de pessoalidade. Há algo que os homens, exatamente por perderem a noção de ter honra ou não, tiveram de inventar, e que acabaram por chamar de dignidade. Como recuperar a honra em uma sociedade moderna, em que a honra não tem qualquer importância?

Não dá, no máximo se pode falar de digno e indigno. Ora, no duelo então como necessariamente farsa, arremedo, pastiche e caricatura, surge a dignidade para se conquistar. É a troca de saliva não pelo beijo, mas pelo cuspe, sinal de nojo, de objetificação, de tomar distância. Cospe-se no chão para se manter distante. Cospe-se no que se objetifica, no que se reconhece como aquilo do qual se quer distância.

Não vamos voltar com os duelos, pois a biopolítica veio para ficar. Portanto, se tivermos que nos vingar ou limpar a honra, será com essa história que se repete como farsa, o duelo do cuspe. Ridículo, mas, enfim, divertido – contanto que não seja conosco.

Texto de Paulo Ghiraldelli, filósofo.






As publicações do Portal Raízes são selecionadas com base no conhecimento empírico social e cientifico, e nos traços definidores da cultura e do comportamento psicossocial dos diferentes povos do mundo, especialmente os de língua portuguesa. Nossa missão é, acima de tudo, despertar o interesse e a reflexão sobre a fenomenologia social humana, bem como os seus conflitos interiores e exteriores. A marca Raízes Jornalismo Cultural foi fundada em maio de 2008 pelo jornalista Doracino Naves (17/01/1949 * 27/02/2017) e a romancista Clara Dawn.