Segundo prega as normas do bom procedimento, aquele que comete um ato delituoso e se arrepende disso, ou ainda se submete à certa punição proposta pela Lei, é então digno de ser perdoado. Somos cobrados para perdoar. Desde pequenos, nos ensinam que perdoar é uma atitude nobre. E que aquele que tem bom coração deve perdoar.
Na obra cinematográfica CORINGA (2019), dirigida por Todd Phillips, fica escancarado o fato de que quando condenamos, o fazemos em relação àquele do qual não podemos ter consciência da história de vida. Quando condenamos alguém por algum ato violento ou criminoso, o fazemos sem o menor conhecimento da configuração que o conduziu para a ação condenável, sem que pudesse ter a menor escolha.
“A pior parte de se ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não a tivesse”. Arthur Fleck (em Coringa 2019)
O criminoso também é uma vítima. Vítima daquilo que o antecedeu e o impeliu para o lugar de delinquente. Somos arrastados para um caminho do qual não temos escolha, e que na melhor das hipóteses podemos reconhecê-lo e nos responsabilizar por isso. Podemos adiar esse reconhecimento e nos iludir com um suposto livre arbítrio, no entanto o caminho estará lá independente do nosso desejo, enquanto insistimos em evitar o reconhecimento.
Isso expõe outra ideia muito popular que nos ensinam. Somos orientados desde criança que a vida é feita de escolhas; que temos poder para escolher o rumo que nossa vida pode tomar. Não, não podemos escolher. Quem faz isso por nós é o nosso inconsciente e Sigmund Freud (1856 – 1939) nos ensinou isso com muita propriedade, muito bem orientado por Arthur Schopenhauer (1788-1860), que muito antes (1819) já nos advertia para o fato de que somos movidos pela vontade e que essa vontade que nos move não pode ser conhecida. A vontade é inconsciente, e não está, e nunca estará, disponível ao conhecimento.
O destino de nossas vidas é determinado por inúmeros fatores que vão, desde o pensamento que nos antecedeu – influenciando nosso caminho – (assim como nos orientou Wilfred Bion – 1897/1979), até a configuração do ambiente, que pode nos acolher, propiciando um destino profícuo, ou, por outro lado, possa nos deixar desamparados e vulneráveis às ameaças que podem vir, tanto de nós mesmos, quanto do outro. Ainda assim, corre-se o risco de colocar o personagem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) como um caso isolado, numa obra fantástica distante da realidade. Mero engano!Nosso tempo está repleto de “Coringas”: na fila da padaria, na repartição do serviço público, na casa do vizinho e finalmente dentro de cada um de nós.
Sim! Cada um de nós tem uma cota psicótica em nossa personalidade. Bion nos propôs isso em sua obra DIFERENCIAÇÃO ENTRE A PERSONALIDADE PSICÓTICA E A PERSONALIDADE NÃO-PSICÓTICA, originalmente publicado em 1957. “Enquanto para Freud, cada um de nós tem sua parte neurótica; Bion contribui com a ideia da parte psicótica da personalidade. Certa cota psicótica que convive lado a lado com partes saudáveis e também as neuróticas”. (Martino, em O LIVRO DO DESAPEGO – 2015). Bion propõem que mesmo o paciente diagnosticado psicótico também contém uma parte não psicótica na personalidade, que coexiste escondida. Na realidade, cada um de nós tem uma cota de cada característica inerente ao ser humano.
“Quer ouvir outra piada? O que você consegue quando cruza um doente mental solitário com uma sociedade que abandona e o trata como um lixo?”. Arthur Fleck (em Coringa)
Somos vítimas do descaso, do menosprezo, da exclusão: sempre que não estamos convenientemente dispostos a servir ao desejo do outro. E, não é surpresa – quando não somos capazes de atingirmos nossas próprias expectativas – nos auto-menosprezamos.
O filme Coringa, traz à tona as consequências da falha nas funções fundamentais, no seio do lar. Quando as funções maternas e paternas não conseguem ser suficientemente cumpridas, arremessam o sujeito aos caprichos das normas da sociedade. Tornando-o um palhaço que implora pelos aplausos de uma platéia impiedosa e exigente, que nunca fica satisfeita.
Texto do professor, psicoterapeuta e escritor, Renato Dias Martino – extraído do seu blog Pensar-se a si-mesmo. Reprodução autorizada pelo autor
Fontes pesquisadas:
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