Parecia um filme de terror, descrevia Nelson Rodrigues em suas crônicas. “Cadáveres jazem na porta das casas, atraindo urubus. O ar é fétido. Os raros transeuntes andam a passos ligeiros, como se fugissem da misteriosa doença. Carroças surgem de tempos em tempos para, sem cuidado ou deferência, recolher os corpos, que seguem em pilhas para o cemitério”.
O filme de terror ocorreu em 1918, quando a gripe espanhola, também conhecida como gripe de 1918, surgiu como uma vasta e mortal pandemia do vírus influenza. De janeiro de 1918 a dezembro de 1920, infectou 500 milhões de pessoas, cerca de um quarto da população mundial na época. Estima-se que o número de mortos esteja entre 17 e 50 milhões, e possivelmente até 100 milhões, tornando-a uma das epidemias mais mortais da história da humanidade.
350 mil pessoas infectadas no Brasil
A doença chegou ao Brasil por volta de setembro de 1918 e espalhou-se por grandes centros, sobretudo por Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. A cidade de São Paulo, por exemplo, pode ter contado com até 350 mil pessoas infectadas.
Naquela época, as autoridades brasileiras ouviram com descaso as notícias vindas da Europa. Acreditava-se que o oceano impediria a chegada da doença ao Brasil, o que não aconteceu. A doença chegou ao país a bordo do navio inglês “SS Demerara” (uma espécie de Correios britânicos), no dia 17 de setembro de 1918. Esse navio chegou com a tripulação contaminada e passou livremente pelos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro, repleto de doentes.
“Carnaval da Ressurreição”
Em 1919, alguns meses após a gripe espanhola assolar o Brasil, a população voltava às ruas para lavar a alma no que chegou a ser chamado de “carnaval da Ressurreição”. E foi exatamente no carnaval de 2020 que os primeiros casos de covid-19 começaram a se espalhar pelo País, mas parece que ainda estamos bem longe de uma nova festa da redenção.
Apesar do século que separa as duas pandemias: gripe espanhola e covid-19, ambas têm muito mais semelhanças do que os avanços sociais e científicos desse período poderiam admitir como razoáveis. É o que argumenta o neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto D’Or, que publicou neste sábado, 13, no portal do Estadão, artigo inédito em que faz um paralelo histórico e de saúde pública das duas doenças.
O pesquisador destaca, em especial, o negacionismo sobre os perigos dos vírus, a oferta de curas milagrosas, as mortes que não puderam ser veladas, a perda de empatia pelo tamanho da tragédia. No texto ele resgata relatos, como os do escritor Nelson Rodrigues, que poderiam perfeitamente descrever os dias atuais.
“A gripe espanhola foi justamente a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. (…)”, escreveu o dramaturgo, em 1967, em memórias resgatadas por Rehen e Igor Fonseca, da ArtBio
Quais foram os erros que fizeram a pandemia de gripe de 1918 durar dois anos?
- Notícias falsas: Na época, não faltavam notícias dizendo que a doença havia sido uma criação dos alemães. Muita gente acreditava que a moléstia era engarrafada na Alemanha e depois distribuída por seus submarinos, que se encarregavam de espalhar as ditas garrafas perto das costas dos países inimigos. Apanhadas nas praias por gente inocente, espalhava-se assim aquela terrível enfermidade. Espalharam a notícia de que um dos remédios utilizados na tentativa de evitar a doença ou curar os doentes foi o quinino (medicamento utilizado originalmente para o combate da malária). Houve uma corrida às farmácias em busca desta substância, seu preço aumentou assustadoramente e o produto acabou se esgotando.
- Não houve investimento em pesquisas para encontrar uma vacina: A comunidade médica daquele período não conseguiu explicar como uma moléstia branda e tão familiar pudesse estar matando tanto. Desconhecia-se seu agente causador e a forma de contágio (as certezas a respeito de como a gripe é transmitida só vieram à tona na década de 1930). Assim, os médicos puderam fazer pouco para salvar a vida dos doentes. Tudo era feito na base da experimentação.
- Negação da gravidade da doença: a gripe de 1918 foi considerada uma doença comum e corriqueira, que atacava especialmente idosos (chamada na época popularmente de “limpa-velhos”), a pandemia de 1918 acabou alterando a idade da população afetada. Morreram principalmente homens adultos, entre 20 e 40 anos (pessoas em idade de participarem do mundo do trabalho), o que causou surpresa entre a classe médica. As vítimas provavelmente precisavam sair de casa para trabalhar, e acabavam assim sendo infectadas.
- Ataque e censura á imprensa: Na época em que a doença se espalhou, o mundo passava pela Primeira Guerra Mundial, e as grandes potências ocidentais estavam envolvidas no conflito havia anos. Por essa razão, os países que estavam em conflito, impuseram forte censura á imprensa. Porque se a imprensa divulgasse as notícias da pandemia, as tropas poderiam abandonar a guerra. Como a Espanha não estava envolvida com a guerra, não censurou a imprensa e, assim, as notícias sobre o avanço da doença na Espanha, se espalharam. Por isso ficou parecendo que a doença inciou e propagou na Espanha.
- Perda de tempo procurando culpados em detrimento de união para salvar vidas: A doença recebeu inúmeros nomes diferentes. Os países afetados atribuíam uns aos outros a culpabilidade pela doença. Na Rússia, a doença recebeu o nome de Febre Siberiana; na Sibéria, Febre Chinesa; na França, Catarro Espanhol ou Peste da Senhora Espanhola; na Espanha, foi batizada com o nome de Febre Russa… e assim, sucessivamente.
Qualquer semelhança da gripe de 1918 com a Covid-19 não é mera coincidência:
Nos dias atuais, novamente se culpam os meios de comunicação por espalharem a sensação de pânico entre a população, ao anunciarem o grande número de vítimas em outros países. Novamente a imprensa é acusada de ser causadora de uma histeria desnecessária. Além disso, aqui no Brasil inúmeras pessoas passaram a negar a existência da pandemia. Muitos afirmaram que era uma mentira da imprensa, que nada daquilo era verdade.
As duas pandemias possuem inúmeras semelhanças, mas vale ressaltar também suas diferenças. Ao contrário da Gripe Espanhola, o atual surto tem sua origem já estabelecida, suas formas de propagação bem conhecidos e maneiras de evitar a contaminação. A situação está gerando uma corrida contra o tempo na busca por um remédio para curar os doentes e por uma vacina para tentar evitar novos casos. Não há comparação entre o conhecimento científico de um século atrás e o atual. Vale destacar aqui o importante papel que a Fundação Oswaldo Cruz vem desempenhando neste contexto.
Ignorância não é mesmo que inocência
É quase inacreditável que um século depois da gripe espanhola, mesmo num mundo globalizado, a ignorância possa prejudicar tantas vidas. Ainda bem, que ignorância não significa inocência. A história pode perdoar os erros cometidos pela falta de conhecimento, mas jamais perdoará a maldade deliberada, o egoísmo, a arrogância, o negacionismo dos fatos, e a supervalorização do capital em detrimento dos atingidos. Não os atingidos que têm o privilégio de poder ficar em casa e não ficam porque são assintomáticos, mas os atingidos que não encontram leitos nos hospitais; que se arrastam em filas quilométricas para receber as migalhas que caem da mesa de um mundo que movimenta:
- Estados Unidos (US$ 105,99 trilhões)
- China (US$ 63,83 trilhões)
- Japão (US$ 24,99 trilhões)
- Alemanha (US$ 14,66 trilhões)
- Reino Unido (US$ 14,34 trilhões)
- França (US$ 13,73 trilhões)
- Índia (US$ 12,61 trilhões)
- Itália (US$ 11,36 trilhões)
- Canadá (US$ 8,57 trilhões)
- Espanha (US$ 7,77 trilhões)
- O Brasil, com US$ 3,54 trilhões, lidera com folga na América Latina. A riqueza do país é maior do que a do México, por exemplo, de US$ 2,7.
Até o final desta edição em 16/02/2021, às 15h31min, o Brasil registrava 9.866.710 de casos confirmados, 239.773 mortes e 8.821.887 recuperados. No mundo todo, já passa de 100 milhões de infectados, mais de 2 milhões de mortos e mais 60 milhões de recuperados. Os dados são do Ministério da Saúde e do mapa mundial.
As informações históricas contidas neste texto foram fornecidos pela mestre em História(PUCRS) Gabrielle Werenicz Alves. Os dados foram extraídos de: Os países que lideram o ranking global de riqueza do Credit Suisse