Em 1964, os versos do brasileiro Eduardo Alves da Costa foram atribuídos ao poeta russo Vladimir Vladimirovitch Maiakovski. O episódio o tornou famoso, mas criou uma maldição que, 50 anos depois, ainda esconde sua prosa. Depois do golpe militar no Brasil, o poema “No caminho com Maiakóvski” passou a ser declamado em protestos nas ruas, assembleias de estudantes e sindicatos. Seus versos simples e diretos foram usados como libelo contra a ditadura.
Naquele tempo, como muito tempo depois, o poema foi atribuído ao escritor de vanguarda soviético Vladímir Maiakóvski (1893-1930). Os manifestantes imaginavam declamar uma tradução anônima de algum militante comunista. Na realidade, como revelariam reportagens nos 44 anos seguintes, o autor do poema era um brasileiro: Eduardo Alves da Costa. Pouca gente acreditou nisso. Muitos preferiram acreditar que Costa não passava do tal tradutor comunista. A versão parecia mais bonita que o fato, e o poema – afinal – soava bom demais para ser brasileiro. Foi assim que Costa virou Maiakóvski.
Confira no vídeo, o poema amaldiçoado de Eduardo Alves da Costa na bela interpretação do ator Ivan Lima.
No caminho com Maiakósvki
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!
“Eu tinha 27 anos, militava na esquerda e pensei em Maiakóvski quando escrevi o poema”, diz Costa, enquanto toma água mineral num café no bairro de Higienópolis, em São Paulo. “Estava sentado num banco na Praça da República, no centro de São Paulo, quando me veio a ideia. Imaginei uma conversa com o poeta que mais admirava. Fui para casa e passei o texto a limpo.” Logo os versos se popularizaram, até fora do Brasil. Ainda hoje, passados 50 anos, há pôsteres com traduções de “No caminho, com Maiakóvski” decorando paredes de cafés de Londres, Paris e Praga. Tornou-se um dos poemas brasileiros mais conhecidos no mundo. Comicamente, há críticos que afirmam tratar-se do poema mais importante da vanguarda soviética. Até hoje, Maiakóvski não foi totalmente desmascarado.
“Esse negócio de Maiakóvski foi uma maldição”, afirma Costa, com um sorriso resignado. “Ajudou a chamar a atenção para minha poesia, mas ocultou toda a minha obra.”
Costa não fez outro sucesso fora o poema, mesmo sendo um prosador hiperativo. Publicou quatro livros de poesia, três de contos, quatro romances e cinco peças de teatro. Aos 78 anos, ele volta a lançar uma obra literária, o romance Tango, com violino (Tordesilhas, 353 páginas, R$ 42), uma mistura de “road story” com romance filosófico, ambientado em São Paulo. Seu protagonista, Abeliano, é um professor de história aposentado que, apesar de chegar aos 70 anos, se comporta como um jovem rebelde. Mora num quarto de hotel no centro de São Paulo e, na falta de outro passatempo, toma ônibus ao acaso. Ali, topa com figuras banais e estranhas, enquanto faz uma crítica do mundo atual e reflete com ironia sobre envelhecer no século XXI. “O ônibus é o símbolo da transitoriedade da vida”, afirma Costa. É uma quase autobiografia, em terceira pessoa. “Certas situações e a maneira de sentir são minhas. Enfrento a terceira idade com alegria. Em geral, os livros sobre o tema trazem pessoas doentes, tristes ou deprimidas. Quis fugir disso. Abeliano não desiste de viver. Ele se recusa não a envelhecer, mas a ficar fora do mundo”. Niilista e alegre, Abeliano lembra Holden Caulfield, o anti-herói adolescente do romance O apanhador no campo de centeio, do americano J.D. Salinger (1919-2010). É como se Holden contasse a incrível aventura de sua velhice.
Outra analogia com Salinger é que Costa, nascido em Niterói em 1936 e criado em São Paulo, isolou-se do ambiente cultural para escrever. Fez como Salinger, que passou 45 anos confinado em sua casa de campo. Costa vive na Praia de Picinguaba, em Ubatuba, Litoral Norte de São Paulo, com a mulher, a produtora Antonieta Felmanas. Neste ponto, terminam as semelhanças com o rabugento Salinger, pois Costa é bem-humorado e conversador. Com seu ar de hippie elegante e o chapéu-panamá eternamente na cabeça, não aparenta a idade que tem. Consegue fazer piadas impiedosas sobre si mesmo, outro sinal de inteligência e vigor de espírito. “Não sou nem de direita nem de esquerda”, diz. “Sou do alto. Virei místico.” Ele costuma viajar para São Paulo a cada dois meses, para rever amigos e parentes e tratar de problemas do Projeto Anchieta, uma ONG de ajuda a comunidades carentes que fundou no bairro de Grajaú, em São Paulo. “Não me preocupei com carreira”, afirma. “Preferi estar próximo aos seres humanos e me dedicar à paixão pela vida. Casei cinco vezes, criei um filho e uma filha e me envolvi com os pobres. A vida é maior que a literatura”.
Fonte: Época
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