Sonhei-lhe. Ela estava no quintal, trabalhando no Pilão. Pilava sabe o quê? Água. Pilava água. Não, não era milho, nem ‘mapira’, nem o quê. Água, grãos do céu. Aproximei. Ela cantava uma canção triste, parecia que estava a adormecer a si própria. Perguntei a razão daquele trabalho.
– Estou a pilar.
– Esses são grãos?
– São tuas lágrimas, marido.
Foi então: vi que ali, naquele pilão, estava a origem do meu sofrimento. Pedi que parasse, mas a minha voz deixou de se ouvir. Ficou seca a minha garganta. Só aquele tunc-tunc-tunc do pilão sempre batendo, batendo, batendo. Aos poucos, fui vendo que o barulho me vinha do peito, era o coração me castigando. Invento! Inventar, qualquer pode. Mas eu daqui da cela só vejo as paredes da vida. Posso sentir um sonho, perfume passante. Agarrar não posso. Agora, já troquei minha vida por sonhos. Não foi só esta noite que sonhei com ela. A noite antepassada, doutor, até chorei. Foi porque assisti minha morte. Olhei no corredor e vi sangue, um rio dele. Era sangue órfão. Sem o pai que era o meu braço cortado. Sangue detido como o dono. Condenado. Não me lembro como cortei. Tenho memória escura por causa dessas tantas noites que bebi.
É sabe, nesse tal sonho, quem salvou o meu sangue espalhado? Foi ela. Apanhou o sangue com as suas mãos antigas. Limpou aquele sangue, tirou a poeira, carinhosa. Juntou os pedaços e ensinou-lhes o caminho para regressar ao meu corpo. Depois ela me chamou com esse nome que eu tenho e que já esqueci, porque ninguém me chama. Sou um número, em mim uso algarismos, não letras.
O senhor me pediu para confessar verdades. Está certo, matei-lhe. Foi crime? Talvez, se dizem. Mas eu adoeço nessa suspeita. Sou um viúvo, não desses que enterra as lembranças. Esses têm socorro do esquecimento. A morte não afasta-me Carlota. Agora, já sei: os mortos nascem todos no mesmo dia. Só os vivos têm data separadas. Carlota voo? Daquela vez que lhe entornei água foi na mulher ou no pássaro? Quem pode saber? O senhor pode?
Uma coisa eu tenho máxima certeza: ela ficou, restante, por fora do caixão. Os que choraram no enterro estavam cegos. Eu ria. É verdade, ria porque dentro do caixão que choravam não havia nada. Ela fugira, salva nas asas. Me viram rir assim, não zangaram. Perdoaram-me. Pensaram que eram essas gargalhadas que não são contrarias da tristeza. Talvez eram soluços engodos, suor do sofrimento. E rezavam. Eu não, não podia. Afinal, não era uma morta falecida que estava ali. Muito-muito era um silêncio na forma de bicho.
Extraído do livro, Vozes Anoitecidas – Prêmio Camões 2013 – Companhia das Letras – São Paulo, 2013. Página 80.
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