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Liniker: “Sou negro, pobre e gay e tenho potência também”

Uma voz poderosa, no tom grave e levemente rouco típico dos artistas de soul, anda circulando pelas redes sociais, cantando em bom português. Ela é negra, vai para cima e para baixo sem dificuldades e já entrou pelos ouvidos de milhões de internautas, convidando-os a swingar ao som de um EP, Cru, lançado menos de um mês atrás. O dono dela tem nome: Liniker – como Gary Lineker, o jogador de futebol britânico que brilhou numa Copa do Mundo poucos anos antes de seu xará brasileiro nascer, em 1995. Porém, mais que tudo, o dono da voz tem presença e sabe o que quer.

“Um dos meus maiores desejos como artista é: bote para fora quem você é, não tem problema”, diz o cantor e compositor de Araraquara – cujo batom roxo e cintilante faz contraste perfeito com a pele negra e cuja barba em forma de cadeado fazem suas grandes argolas prateadas luzirem ainda mais. Liniker, do alto de seus 20 anos, tem estilo bem definido, na música e na vida. Conta que quando usou um turbante pela primeira vez, há alguns anos, sentiu que vestia uma coroa.

LILO CLARETO

No circuito da música independente, pode-se dizer que ele já foi coroado, com uma turnê nacional confirmada e outra internacional em vista, ao lado de sua banda, Liniker e os Caramelos. Que não se estranhe que ele estoure também, muito em breve, nos palcos da indústria tradicional. Munido, por um lado, de energia, o filho de Ângela (“minha mãe, minha maior inspiração”) se diz pronto para decolar na carreira artística. De outro, revestido de coragem “em tempos tão opressores”, caminha por Araraquara, Santo André (onde há dois anos estuda teatro) e São Paulo sem medo de ser quem é.

Pergunta. Você estourou, né? E muito rápido.

Resposta. Estourei. Lançamos o EP no dia 15 de outubro, e em uma semana um dos vídeos que gravamos já tinha um milhão de visualizações. Foi surpreendente. Você sempre espera que a coisa vá bem, mas não que aconteça tão rápido assim. Está tudo muito incrível, do tipo “Meu Deus, olha onde a gente está chegando…”.

P. Quando foi que você cantou pela primeira vez e viu que tinha talento para a música?

R. Foi na sexta série. A professora pediu para a gente cantar no dia das mães, acho. Eu cantei, e todo mundo ficou boquiaberto. Sempre gostei de cantar. Mas como minha família é de músicos, ficava quieto, com vergonha. Todo mundo era profissa, então eu pensava: “Vou abrir minha boca aqui e cantar? Não”. Depois fui fazer teatro, e a peça era Os Saltimbancos, precisava cantar. Fiz o teste para ser o cachorro, passei e não parei mais. Comecei a investir a fundo no canto depois que entrei no teatro, com uns 15 anos.

P. Seu negócio é mesmo a black music, pelo que mostra seu primeiro disco, ou você se identifica com outros gêneros musicais?

R. Sim. Black music, num sentido amplo do termo, foi o que eu cresci ouvindo. Tenho uma influência muito forte do samba rock por causa da minha mãe, que dava aula de dança desse ritmo pelo interior de São Paulo. Eu sempre estava com ela, dançando na sala, aprendendo os passinhos. E com os meus tios, que são compositores de samba raiz. Um deles já está na carreira há 30 anos. Então, eu cresci com essas influências de música preta. Se eu não fosse músico, com essa família, não sei o que era para ser.

P. Como é a cena musical em Araraquara?

R. Tem muita coisa, desde as bandas sertanejas até as de samba. Também tem muita coisa de rock lá, inclusive um festival que se chama Grito Rock e outro, Araraquara Rock. E aí, tem o chamadoBaile do Carmo, com o qual minha família sempre foi muito envolvida. Tem 150 anos, se não me engano, e começou nos quilombos que havia perto de Araraquara. Os negros se reuniam nas fazendas, aproveitando uma data que os patrões deixavam eles usarem o quintal para festejar. Isso foi tomando visibilidade na cidade, a cada ano com novas atrações. São cinco dias: baile de gala, baile black, baile esportivo, jogo e almoço. Então toda a comunidade negra de Araraquara se encontra aí, em julho. É incrível, uma das maiores influências da minha vida.

P. Curioso, porque ao menos quem não é de Araraquara relaciona a cidade com os fazendeiros, os imigrantes italianos, empresas grandes como a Cutrale… Não tanto com a comunidade negra.

R. Verdade. Acho que o Baile do Carmo é o único meio hoje que vai contra o escanteio da cultura negra na cidade. O evento resiste, e a cada ano toma uma potência maior, ainda que falte um pouco de engajamento da própria comunidade negra, na minha opinião. Muitas pessoas em Araraquara nunca ouviram falar do baile na própria cidade.

P. Li que sua mãe é uma grande inspiração para você. Por quê?

R. Sim. Minha mãe é uma mulher incrível. Ela se chama Ângela. Criou meu irmão, que tem 13 anos, e a mim, sozinha, com muito esforço. Tenho pouca relação com o meu pai. Minha mãe, ao contrário, é um grande apoio: aquela pessoa pra frente, aquariana, que pede calma e diz que tudo vai dar certo. A todos os lugares aonde ia, ela fazia questão de me apresentar: “Este é o meu filho, Liniker, a gente está junto aqui”. Uma pessoa muito presente, pé no chão, que vai para a vida. “Vai, segue aí. Não fique na minha saia, por mais que eu vá sofrer”.

P. Fale um pouco sobre o seu primeiro EP, Cru.

R. Comecei a compor aos 16 anos. Eu escrevia cartas de amor também, que não tinha coragem de entregar para os caras de quem gostava. Até que entendi que tinha que botar isso para o mundo, de alguma forma. Ano passado, depois de um ano estudando em São Paulo, fui para Araraquara e conheci o Guilherme Garboso, o baterista da banda até pouco tempo atrás, e disse para ele que queria produzir minhas músicas, que tinha essas letras e precisa que a gente fosse pela vertente do soul e da black music. Queria que as pessoas sentissem como eu me sinto quando escuto esse tipo de música: uma coisa que pulsa, que não tem como conter. Começamos a trabalhar em fevereiro e ensaiamos até julho. Em outubro, lançamos o EP com três músicas: Louise do Brésil, Zero e Caeu. Todo o processo foi muito colaborativo, como minha experiência de estudo na Escola Livre de Teatro de Santo André. Convidamos pessoas que queriam trocar artisticamente e aí rolou de forma muito orgânica.

P. Quais são suas referências musicais?

R. Clube do Balanço, total. Cartola. Pela Etta James sou tarado. Pela Nina Simone também. Amo todos os classicões do samba… E Caetano, Gil, Gal. Gosto da nossa música, que tento juntar com a de fora. Escuto muita coisa atual também, como a Tulipa Ruiz e a Tássia Reis, que é uma rapper nova. E os meus tios, né? São meu poço de inspiração sempre. Se não fosse por eles…

P. Seu trabalho musical parece vir acompanhado de uma preocupação estética.

R. Sim. Queríamos que o EP fosse uma coisa íntima, então gravamos ao vivo. Para captar o momento, o cru mesmo. As músicas ficaram muito cênicas, assim como o arranjo e a interpretação. E aí estou de batom, de brincão… Eu me visto assim no meu dia a dia e sentia que precisava mostrar isso para o público, ser o mais transparente possível. Por que colocar uma calça jeans e uma camiseta e mostrar meu trabalho só com a voz? Meu corpo é um corpo político. Preciso mostrar para as pessoas o que estou passando. “Este é o Liniker, um cara pode usar um batom, turbante e cantar”. Isso não me distancia de nada. Sou um artista deste porte.

P. Usar roupas ditas femininas nunca causou problemas a você, por causa da reação de outras pessoas?

R. Sempre quis usar as roupas da minha mãe, mas não fazia isso, sobretudo em Araraquara, uma cidade pequena, porque ia ser hostilizado. Ia para um brechó, queria um vestido, um brinco, mas não comprava… Comigo mesmo eu estava bem, o problema era a cidade. Meu processo desatou depois de sair de casa e me sentir mais liberto. Pensei: “Agora que estou construindo minha liberdade, se eu não puder ser quem eu sou e vestir o que quero, não vai adiantar de nada”. Comecei a usar batom e saia e a sair na rua com essas roupas. Aí fui para Araraquara pela primeira vez pensando “vou mostrar para eles quem sou”. Um tio meu me questionou, queria saber o que estava acontecendo e me deu uma roupa dele – “para você saber como homem se veste”. Agradeci, mas disse que não ia usar. E minha mãe me defendeu: “Deixa o Liniker, ele é um artista”. Ela falou que as pessoas iam falar, mas que a gente estava juntos. Se minha mãe, que tinha me criado, estava tranquila, tudo estava bem e “o resto que se foda”. Uma vez fui para casa e quando voltei, encontrei um rímel de presente que ela colocou na minha bolsa. Que fofa.

P. Você disse que seu corpo é político. O que você gostaria de transmitir com ele?

R. Neste momento de tanta opressão, me colocar assim, com essa força, é muito importante. As pessoas precisam saber que eu sou negro, pobre e gay e posso ter uma potência também. Sou um artista que se expressa assim. Então, se você está aí, se sente reprimido e tem vontade de colocar seus demônios para fora, mostrar quem você realmente é, coloque-se. Esse é um dos meus maiores desejos como artista desta geração.

P. É preciso ser corajoso também.

R. Nunca me bateram, graças a Deus. Mas fui muito agredido verbalmente. No metrô, você está tranquila e tem um cara com um celular, tentando disfarçar o fato de que está te fotografando. É muito escroto. Está invadindo o meu espaço. Não faz sentido. Um motoqueiro na rua uma vez falou: “Vou te comer, vem cá!”. Acho que é preciso ser corajoso. Não posso deixar que isso me reprima. Não sou essa pessoa.

Fonte: El País

 

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