Chegar em casa é se jogar na cama, sentir os lençóis, ler aquele livro parado na estante, pegar algumas guloseimas no armário e assistir um filme no Netflix. É liberdade, sossego, acolhimento.

Mas às vezes você divide esse espaço de paz e, ao invés do cenário paradisíaco descrito acima, encontra louça suja, lixo em cima da pia, sapatos espalhados pela sala e muitos outros sinais de desleixo deslavado em cada canto.

Os olhos vermelhos, o sangue fervente e  a rinite furiosa com o ar pesado e os espirros completam o cenário de fracasso existencial. Isso não pode acontecer!

É óbvio que não é só a bagunça. Dá pra colocar na conta todas as vezes que engoliu em seco as desculpinhas. “Estou muito ocupado”, “trabalhei até tarde”, “estou exausto”, “eu só quero chegar em casa e não me preocupar com nada”. Você podia dizer o mesmo, mas não. Ao invés disso, você foi lá e fez o que precisava ser feito.

Você fala uma vez, a segunda, a terceira. As discussões acontecem e alguma coisa em você se sente como naqueles anos em que os seus pais se divorciavam lentamente, enquanto você ouvia os gritos e olhava pela porta entreaberta, fingindo que estava dormindo no quarto.

Mesmo engasgada e com medo, você quer mudanças, ações práticas e reais. Quer sentir as boas intenções. Você tem sua razão e merece colaboração, depois de tanto esforço e tempo dedicado a manter as coisas no lugar.

Mas quando o cansaço é mais forte que a vontade de melhorar, você desiste. O que sobra é aquela sensação amarga de ter passado do ponto, de ter forçado o impossível. Cumprimentos embaraçosos de quem não quer ser mal educado, apesar de tudo.

Janeiro, fevereiro, março e mais alguns meses se vão. As notícias são visitas inconvenientes, nunca sabem a boa hora para chegar.

Viagens, festas, novos relacionamentos, e enfim, uma foto da casa nova. O Facebook é bom em montar cenários ideais e fazer parecer que as pessoas são muito mais felizes e perfeitas do que realmente são. Mas em complemento, há também os relatos dos seus amigos, sobre como está tudo tão melhor para ele, como ele finalmente está colocando as coisas no lugar e dando um jeito na vida.

Você respira, alívio puro, lembrando da sensação de ser uma ditadora, empurrando-o em direção a algo que até então ele não queria. Ou que, pelo menos, não queria com você.

Você dá um sorriso de canto de boca e chacoalha a cabeça em negação, concatenando as ironias possíveis ao olhar para a situação inteira. Era óbvio.

Poucas coisas podem ser tão violentas e egoístas quanto olhar para alguém e querer que essa pessoa mude só para se adequar ao que você quer. Ao mesmo tempo, quão mimado é alguém que descuida de tudo ao seu redor, sem pensar no bem-estar de quem vive na mesma casa?

Como sempre, o senso comum mostra sua riqueza, estando ao mesmo tempo correto e incorreto. Não é que as pessoas nunca mudam. É só que a gente não consegue mudar ninguém.

Texto de Luciano Andolini – Publicado originalmente em Papo de Homem






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