Segundo artigo publicado na Universa: após uma semana de via-sacra, a menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio em São Mateus, no norte do Espírito Santo, pôde, enfim, realizar o abortamento legal. Para acessar esse direito, garantido há 80 anos pelo Código Penal Brasileiro, precisou ser levada para Recife, no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), após o procedimento ter sido negado no Hospital Universitário de Vitória. Todo o procedimento foi acompanhado por gritos de “assassina”, vindos do lado de fora.
Um dos profissionais que atendeu a criança relata, na decisão judicial, que “ela apertava contra o peito um urso de pelúcia e só de tocar no assunto da gestação entrava em profundo sofrimento, gritava, chorava e negava a todo instante, apenas reafirmando não querer”.
Depois, ela seguiu para a delegacia de polícia e foi encaminhada a um abrigo para aguardar a decisão da Justiça, que saiu na última sexta (14). Foi preciso articular uma ação de guerra para que a vítima, acompanhada de sua avó, chegasse com segurança e tranquilidade ao hospital no domingo (16). O itinerário foi mantido em sigilo para salvaguardar o direito da criança, como relata a enfermeira obstetra Paula Viana, coordenadora do grupo Curumim — Gestação e Parto.
Durante o percurso, a equipe técnica responsável pelo acompanhamento foi informada da mobilização do grupo fundamentalista que se organizava para constrangê-la. “Tivemos que lançar mão de estratégias bem delicadas, como colocar a avó e a menina no porta-malas do carro que as levou para o hospital, porque fomos informadas pela diretoria do Cisam que existia uma movimentação muito hostil em frente à maternidade. Uma situação constrangedora e humilhante”, revelou Paula, que integrou a equipe junto à uma assistente social do Estado do Espírito Santo.
A entrada ocorreu pelo portão dos fundos da maternidade para que a menina fosse atendida com rapidez pela equipe de enfermagem. “A primeira etapa do procedimento ocorreu prontamente. A menina foi muito bem acolhida pela equipe e seguiu para uma área reservada. A avó acompanhou e foi ouvida pela equipe, que explicou todos os procedimentos que seriam feitos para a criança”, relata a coordenadora do Grupo Curumim.
“Ela, uma criança calada e com um olhar muito triste, mas com um depoimento muito bonito: ‘Eu tô bem, quero voltar logo, porque quero jogar futebol’. O tempo todo ela ficou agarrada a uma girafa de pelúcia e isso comoveu bastante toda a equipe, porque a gente viu o quanto de inocência e sofrimento aquela criança tinha passado”, descreve Paula.
Após ter seu nome revelado pela extremista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, a menina receberá uma nova identidade. Ela, que queria voltar pra casa e jogar futebol, deve mudar de cidade e entrar num programa de proteção a vítimas de violência. Segundo a enfermeira Paula Viana, que acompanhou a criança, as mudanças já podem ser notadas: “Ela chegou muito séria, rosto de tristeza com tudo que estava passando. Depois do procedimento, se mostrou outra menina, com alívio, olhos alegres toda vez que recebia presentes”.
Para o ginecologista, Cristião Fernando Rosas, manter a gravidez da criança contra sua vontade é uma forma de tortura. “Manter uma criança gestante à sua revelia é não permitir que tenha garantido um direito constitucional, civil, um direito reprodutivo assegurado pelos tratados internacionais, é uma terceira violência. É submetê-la a uma condição de tortura por nove meses. Tortura é crime cruel”.
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