Queridos pais de Santa Maria, é com imensa indignação e revolta que lhes escrevo hoje. Não. Nós não nos conhecemos. Eu me chamo Juliana Santelli, sou moradora de Goiânia GO e tenho 22 anos. A idade de muitas das vítimas do incêndio na Boate Kiss, suponho. Todo tanto que eu disser a vocês que sinto muito pelo que aconteceu, será pouco. Palavra alguma é capaz de nomear meu pesar.
Como podem imaginar, eu era bem novinha no dia do incêndio. Tinha 12 anos. Por isso, não me lembro de muitos detalhes de minhas primeiras impressões sobre a tragédia. Mas me lembro da intensa movimentação da mídia para noticiar tudo a respeito do caso e seus desdobramentos. E também me recordo de uma professora conversar com minha turma na escola a respeito.
O tempo foi passando e vez ou outra eu esbarrava em alguma reportagem do caso Kiss, alguma manifestação por justiça e meu coração apertava em todas as ocasiões. Não consigo nem idealizar como é perder alguém que a gente proporciona a vida. Uma menção ou outra nos jornais, um lembrete a cada ano no dia do aniversário da tragédia, também nunca me pareceu dar conta do que precisava ser dito, ser feito por aqueles jovens.
Até que em 2018, o livro avassalador de Daniela Arbex, “Todo Dia a Mesma Noite”, levou-me para o cenário de caos e agonia da madrugada do dia 27. Se não me falha a memória, terminei a obra de Daniela em 3 sentadas. Talvez eu não devesse ter lido tão rápido e sozinha. Fiquei semanas a fio repassando os trechos de uma das mais tristes e inacreditáveis histórias que já li. Não demora muito e eu que vou frequentar esse tipo de ambiente, pensava comigo.
Sou por natureza fã do trabalho de Daniela e também me tornei jornalista. Mas a precisão de sua escrita, é especialmente dolorosa nesta produção. Eu sentia vontade de abraçar cada pai, cada mãe, conforme ela ia contando as histórias, dando nome e gostos para os números de que ouvíamos falar.
Numa aula de jornalismo contemporâneo na faculdade, quando o professor mencionou “Todo Dia a Mesma Noite” para nós, comentei que já havia lido e que o relato da mãe de Andrielle Righi, não saía da minha cabeça por nada. Segundo sua genitora, a luz do quarto em que a filha dormiu por pouco mais de duas décadas, ainda é acesa todas as noites. Esta fala em particular me seca a garganta, porque religiosamente todas as noites, minha mãe vai até meu quarto conferir a luz também.
Um outro relato que minha memória registrou por conta própria, foi o da mãe de Dani, a jovem que tinha um coração tatuado na perna com seu nome. Ela não queria acreditar que era sua garota mesmo e com razão. Assim como a mãe de Augusto preferiu não entrar no ginásio para procurar o filho, não querendo crer que ele estava ali. Mas ele estava, infelizmente. E foi Cezar, o esposo, quem confirmou o que mãe nenhuma merece ouvir, passar.
Ontem, 26, eu assisti na Globoplay a série documental sobre o incêndio na boate Kiss e chorei. Chorei em cada um dos 5 episódios. Não é algo fácil de acompanhar. Enquanto telespectadora, posso dizer que a dor de vocês e todo desconforto por conta da impunidade, atravessa as telas e chega ao nosso espírito. Eu queria poder fazer algo pela depoente Jéssica, do segundo episódio, quando ela chora e diz que devolveu o irmão num caixão para os pais.
De todo coração, eu queria poder abraçar as mães da cidade chamada Manuel Viana. Gente, como que de uma vez só se enterra 7 filhos? De onde tirar forças para viver com duas safenas no peito depois de 2 infartes? Ainda que seja por uma causa terrível, seu Paulo, pai de Rafael, com certeza é uma das pessoas mais fortes e insistentes de que já escutei falar.
Que me perdoe a defesa dos sócios da Kiss e dos integrantes da banda, mas não acreditei numa só palavra que os 4 pronunciaram durante o julgamento. Nenhum choro é mais intenso e mais dolorido que o dos familiares dos 242 inocentes que perderam suas vidas por uma série de irresponsabilidades. Como essas pessoas conseguem colocar a cabeça no travesseiro sabendo que de alguma forma colaboraram para a tragédia?
É difícil de acreditar na anulação do jure por parte do Estado Brasileiro. Se alguém me contasse que houve um incêndio numa boate, passaram-se quase 9 anos até os acusados irem a jure e depois esse jure fora anulado, eu não acreditaria. Juro por qualquer coisa que não acreditaria. Sou leiga no assunto, mas me soa como, no mínimo, estranho. Até quando pais, mães, familiares e sobreviventes terão que conviver com essa indiferença a suas dores?
A moça que perdeu a perna em decorrência do incêndio e que para o resto da vida vai ter que fazer tratamento pulmonar, por exemplo, por ter inalado a fumaça tóxica, deveria ser vista como prova viva que o episódio Boate Kiss jamais deveria ter acontecido e já que aconteceu, que não se repita. O Brasil não se recente pelos que foram embora e pelos que ainda permanecem de certo modo naquele domingo desassossegado?
Se formos mesmo um povo que não foge a luta, como demonstra nosso hino, é nossa responsabilidade enquanto sociedade nos unir a vocês na busca pela justiça e pela honra desses meninos e meninas. Assim como Santa Maria nunca mais foi a mesma após o ocorrido, quero deduzir, o resto da nação também não deveria ser. Não é certo, não é cabível, não é humano, não é suportável.
Sei, por experiência pessoal, que nada do que eu lhes disser, será capaz de diminuir o sofrimento de vocês. Mas se servir de alguma coisa, gostaria que soubessem que não estão sozinhos. Tenho certeza que milhares de pessoas, assim como eu, choram em coro com vocês e a seu modo homenageiam seus filhos, filhas e sentem muito pelos traumas dos sobreviventes. Faço coro a vocês e também grito: Kiss, para que não se repita! Por empatia e dever cidadão, Juliana Santelli
PS. O incêndio na boate Kiss completa dez anos neste dia 27/01/2023. A tragédia provocou a morte de 242 pessoas, mais de 600 feridos e comove o país até hoje, sem nenhum réu responsabilizado.
Juliana Santelli é jornalista, jovem, negra, PCD. Autora do livro: “Entre Vistas” sobre a maternidade solo na sociedade brasileira pós-moderna (prelo)
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