Na noite de 27 de Novembro de 1881, Friedrich Nietzsche foi no teatro Paganini em Génova para assistir, pela primeira vez, à ópera Carmen, de Bizet. Assistiu-a toda de modo inquietante, pois naqueles instantes teve uma revelação que no dia seguinte, contaria, em carta, ao amigo músico chamado Peter Gast, que estava em Veneza.
“Hurra! Amigo! Tive ontem a revelação de mais uma bela obra. Uma ópera de George Bizet (quem é, sabes-me dizer?). Carmen. É espiritual e é forte. É mesmo emocionante. Ouve-se como se se lesse a novela de Mérimée. Aqui está um talento musical verdadeiro que não se desorientou com o Wagner, e que, pelo contrário, é um digno discípulo de Berlioz. Sempre tive fé em que uma coisa deste género pudesse acontecer. Os franceses são os melhores no domínio da música dramática, eu bem tinha suspeitado disso”.
Peter Gast, o tal amigo, responde-lhe:
“Bizet já morreu. Há seis anos. E ainda novo. Foi aluno de Halèvy. A Carmen é representada muitas vezes, mas, se queres que te diga, nunca a vi”.
Nietzsche fica muito impressionado por saber que Bizet morreu. Volta a assistir à Carmen.
“Carmen! Mas que personagem apaixonada e fascinante é esta Carmen, esta obra meridional por excelência vale bem uma viagem a Espanha. Ah, sim! Agora me lembro. Há de fato uma novela de Mérimée chamada Carmen. E reparo que tanto a ideia como o desenvolvimento trágico da novela subsistem na ópera – aliás, o libretto é verdadeiramente bom”.
E Nietzsche ficou persuadido de que a Carmené é a melhor ópera que alguma vez alguém compôs. Comprou uma partitura, uma redução para canto e piano. E começou a anotá-la à margem. E depois de anotada, a enviou ao amigo, Peter Gast. Confiando em sua humanidade e na musicalidade que ele possua, mas não descartou a possibilidade de que ele iria rir de suas anotações à margem da partitura da Carmen.
“Recebi a tua partitura e apreciei devidamente as tuas notas à margem. Fiquei espantado. Com a música, sim, mas mais ainda com as tuas notas, o que me convenceu de vez de que tu és mais musical do que eu, que sou músico”.
Peter Gast esquecia que Nietzsche também era músico, e músico preparado, alguns pontos acima de um diletante. De qualquer do modo, e por uma questão de curiosidade, é bom dizer que esta partitura da Carmen (versão italiana) anotada por Nietzsche ainda existe. Está conservada nos arquivos Goethe-Schiller em Weimar e no fim do prelúdio, à margem Nietzsche enfim ressuscita o deus que ele mesmo havia “matado”, escrevendo: “Agora há um deus que dança em mim”.
Extraído do livro “Nietzsche – a biografia de uma tragédia” – organizado Por Rüdiger Safranski