António Coimbra de Matos é o maior nome da psicanálise portuguesa, comprometido a estudar e a tentar compreender a condição humana. Focado no futuro, amor, saúde, doença, vida e a morte. Fez do amor o seu manta, dedicou a vida a estudar um dos lados mais obscuros da vida, a depressão. E promete continuar, a estudar, a investigar, a guiar os seus pacientes como se fosse um farol e um catalisador. Selecionamos alguns excertos da entrevista que ele concedeu à jornalista Carolina Reis, do *Jornal Expresso.
A depressão é um luto patológico
Comecei a ver através dos meus pacientes que as teorias que havia — mesmo na psicanálise — não explicavam bem o fenômeno. E comecei a procurar eu próprio. Há uma coisa que, geralmente, é confundida pelos psiquiatras e pelos psicanalistas com a depressão que é o luto. Freud dizia que a depressão é um luto patológico. O luto é uma reação perante a perda real de uma pessoa, o paradigma é a morte de uma pessoa amada. A depressão é a reação perante a perda do afeto de uma pessoa. É a ruptura afetiva.
Há depressões normais e depressões patológicas
Há depressões normais e depressões patológicas. E lutos normais e lutos patológicos. O luto normal é de memória e de substituição. Eu vou-me esquecendo do meu pai que faleceu e substituo por um professor, amigos mais velhos. E há lutos patológicos, em que fico eternamente a pensar que me faz muita falta o meu pai que já morreu. A depressão é a mesma coisa. Nas normais, quando perco o afeto de uma pessoa importante para mim, deprimo. Mas na depressão patológica atribuo a culpa a mim.
A depressão atinge todas as classes sociais
Sim, mas aumenta com o sentimento de opressão, de que se está limitado. A pobreza aumenta a depressão, é a falta de esperança. […] A revolta é o grande remédio para a depressão. Começamos a melhorar quando começamos a revoltar. Há um estudo interessante do Durkeim, da primeira década do século XX, que diz que nos grandes períodos de guerra, os suicídios diminuem. Porque a revolta é permitida [Isso se refere a chamada raiva produtiva que nos arranca da zona de conforto. “Quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda”, dizia Freud].
Como é que se trata a depressão?
Em alguns casos graves, será necessária alguma medicação. Mas fundamentalmente pela reestruturação da pessoa pelo meio psicoterapêutico, restaurar a autoestima ferida. É que no luto a autoestima não é atingida, na depressão é. Isso já Freud tinha reparado. É um trabalho demorado, difícil. Nem sempre é necessário uma psicanálise, no divã, pode ser psicoterapia face a face. Depende dos casos, se é mais ligeiro, mais recente, consegue-se tratar face a face. Quanto antes buscar ajuda, melhor.
Trata-se conversando?
Não é só conversa. É perceber como é que a pessoa se deprimiu e como é que pode sair disso. A psicoterapia esteve muito presa às causas, hoje pensamos nisso, mas sobretudo nas soluções. O que é que a pessoa pode fazer para sair da depressão. Levar a pessoa a perceber que aconteceu aquilo, mas a vida não acaba aí. Há outros interesses, o futuro.
A solução, a cura, está dentro de nós?
Está. Mas o analista não é, como se julgou durante muito tempo, um guia, um orientador, um pai, um professor, um padre. Costumo defini-lo em duas funções: de farol, que ilumina e deixa o paciente escolher o seu caminho; e de catalisador, capaz de procurar o processo de mudança, com possibilidade de sucessos. O psicanalista tem de ter uma atitude tal que o paciente sente que se pode abrir. […]Tem de se ter a capacidade de ser um bom ouvinte, que não critica, não castiga, leva o paciente a abrir-se. Ser suficientemente sensível para aceitar pôr-se na pele do paciente. É a chamada empatia. É pôr-se na pele do paciente e ter a resposta afetiva adequada, que não seja culpabilizante nem desvalorizante.
Não há pacientes resistentes, há analistas incompetentes
Em princípio, o paciente tem sempre razão. Vamos ver é se essa razão é total ou se não. Se ele fez qualquer coisa, lá tinha os seus motivos, a sua razão. Vou procurar essa razão, antes de julgar pela minha razão. Se um paciente me diz que bate todos os dias no filho eu fico um bocado irritado, mas devo pensar: ele deve ter alguma razão. O filho faz-lhe ciúmes porque é mais inteligente do que ele? O filho faz-lhe lembrar alguém de quem ele não gostava? Não se deve começar logo por criticar qual é a razão do paciente. É tentar compreendê-lo. Não há pacientes resistentes, há analistas incompetentes. Lembro-me de um texto antigo, de um discípulo de Freud, Wilhelm Stekel, que tem um livro, de 1911, que se chama “A Mulher Frígida.” E acaba com um parágrafo em que diz: mulheres frígidas não existem, existem homens incompetentes.
A gente existe quando se sente amado
Isso é importante porque [não se sentir amado] é uma das causas da depressão. Já reparou que quando os namorados se despedem no aeroporto ambos dizem: não te esqueças de mim. É a importância que o outro nos leva, que o outro pense em nós, que o outro exista. Ou que nós existamos para o outro. Durante muito tempo pensou-se que o importante era a introjeção do objeto, tenho a minha mãe, o meu namorado, dentro de mim. Mas mais importante é eu ter a certeza que estou no interior do meu objeto, que a minha mãe pensa em mim, que a minha namorada pensa em mim. Chamo-lhe a constância do sujeito no interior do seu objeto. Aliás, tenho um livro que se chama “Vária. Existo Porque Fui Amado”.
É difícil amar?
Não é fácil, mas é bom. E se não se amar não se vive. Tive uma analisanda — professora de psicologia — que um dia me disse que tinha descoberto que eu era religioso, que o meu deus era o Amor. Acho que é verdade. É a coisa que nos mantém, que nos entusiasma e pelo qual vale a pena lutar.
Como sabemos se é amor verdadeiro?
É um amor ablativo, que se propõe a dar. Mais do que captar. As relações são boas quando são recíprocas. No amor, na amizade, nas relações pessoais evoluídas, o mais importante é a pessoa. Enquanto que em relações mais primárias, mais biológicas, o que interessa é o que a pessoa nos dá. Uma coisa é eu gostar daquela pessoa como pessoa, e gostar de estar com ela, da companhia dela, de fazer projetos com ela. Outra coisa é estar a pensar em ir para a cama com ela.
A dor é boa para a nossa construção?
É inevitável. Existe. É um sinal de que as coisas não estão a correr bem e temos de fazer qualquer coisa para ultrapassar. A ideia da civilização judaico-cristã é a de que a dor nos esculpe a vida. Nascemos no pecado, a culpa é secundária e o principal impulso é a busca, de explorar o mundo. Depois é que vem o medo. A culpa é emoção inibitória, tal como o medo, a culpa e a vergonha.
Qual é a pior?
Todas são más. O medo é necessário, mas é preciso ultrapassar o medo. Todos nós perante uma emoção nova temos uma reação, por um lado medo, isto é algo que eu desconheço, pode ser perigoso. Por outro lado, isto é novo pode trazer coisas bestiais. Se somos mais saudáveis, predomina o entusiasmo, vamos à conquista. Se somos mais doentes predomina o medo, retraímo-nos. Varia de pessoa para pessoa e consoante o contexto da vida. Se a criança tem pais compreensivos diminui o medo e pode lançar-se na aventura.
Temos perturbações da sociedade moderna?
É uma coisa muito discutida. Na sociedade urbana, o convívio é menor, desapareceu o convívio de bairro. Há um maior isolamento em relações mais próximas. Este individualismo leva a uma certa solidão, a um certa desconfiança, leva a paranoia, a pessoa pode ser prejudicada pelo outro. As relações afetivas são menos consistentes. São mais superficiais, menos espessas, mais finas, mais delgadas. Partem facilmente.
Que balanço faz da condição humana?
A parte boa: a capacidade de amar, de criar. A parte má: o egoísmo, a vaidade, a sacanice. Podemos ter tudo numa só pessoa, mas há predomínios. Há duas coisas importantes, a capacidade de nos interessarmos pelo outro, em que o mais importante são as pessoas de quem gosto. E depois há o narcisismo, os outros que se lixem. E todos nós temos um bocado dos dois. Quando somos mais saudáveis, somos melhores pessoas. Predomina a capacidade de a pessoa se interessar pelo outro, ajudar a sociedade, criar um mundo melhor. Aí também se mete a questão da morte. Quando o indivíduo tem a capacidade de deixar um legado, há uma certa imortalidade simbólica.
* Leia a entrevista na íntegra no Jornal Expresso.