Há cem anos a Terra era acometida por um flagelo que parecia nunca acabar, quiçá prenúncio do fim dos tempos. Era o quarto ano de uma guerra como nunca se vira até então. Então, dos escombros e das trincheiras enlameadas da Primeira Guerra, surgiu uma praga só comparável à peste negra medieval. A gripe de 1918 foi uma pandemia que se espalhou por quase toda parte do mundo, dona de uma virulência incomum, produzida por uma cepa do hoje conhecido vírus Influenza tipo A, do subtipo H1N1.
Tendo contaminado mais de 500 milhões de pessoas (ou quase 27% da população mundial na época) e fazendo até 100 milhões de mortos (perto de 5% da população global), foi uma das pandemias mais letais da história da humanidade.
Esta praga marcou a infância do então menino Nelson Rodrigues. Com 6 anos à época, morador da Aldeia Campista, zona norte do Rio de Janeiro, o futuro escritor vivenciou com seus olhos de criança a transformação da cidade, a mais atingida no país pela gripe. Quando em 1967 começou a escrever suas memórias, em crônicas diárias para o jornal Correio da Manhã, essas lembranças foram abordadas em vários trechos, em especial nos capítulos XI e XII, publicados em 8 e 9 de março. Confira este excerto:
E quem não morreu com a Espanhola?
“A gripe foi justamente a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos… Durante toda a Espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão.
Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na Espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava ninguém. Nem um vira-lata vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho, nem ao menos inimigo.
A forma de lidar com os corpos era igualmente aterradora. “Vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gritar para a carroça de lixo: ‘Aqui tem um! Aqui tem um!’. E, então, a carroça, ou o caminhão, parava. O cadáver era atirado em cima dos outros. Ninguém chorando ninguém.
Se os próprios familiares não mais tinham ânimo para rituais, os carregadores muito menos. Nem para esperar o desfecho da morte. E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes. Nada de túmulos exclusivos. Todo mundo era despejado em buracos, crateras hediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, de repente, um pé florescia na terra, ou emergia uma mão cheia de bichos.
De repente, passou a gripe. Com o fim da gripe as coisas não mais foram as mesmas. A peste deixara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: ‘Quem não morreu na Espanhola?’. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. A pandemia passou e, no Brasil, o Carnaval de 1920 representou um desafogo e a euforia geral tomou conta da população. E foi um desabamento de usos costumes, valores, pudores. Exatamente como antes.
Excerto extraído do acervo da Biblioteca Nacional e as informações acerca da Gripe de 1918 são da Fio Cruz.
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