Se nós somos aquilo que comemos e a maneira que comemos, quer dizer que tudo o que ingerimos e como ingerimos, reflete diretamente em nossa vida de modo integral. Em suma: se tivermos bons hábitos alimentares, nosso corpo responderá com mais saúde, energia e força.
Usando essa metáfora para a saúde física, mental, emocional, espiritual, social, cultural… a nossa dieta não é só aquilo que comemos, é também o que assistimos, ouvimos, lemos, pesquisamos, estudamos… É também as pessoas com quem convivemos; são as coisas que engolimos sem querer todos os dias, é o lixo emocional que armazenamos; são as feridas da alma, o sofrimento psíquico, a carga energética que captamos dos outros, dos lugares que frequentamos, das escolhas que tomamos. O corpo e a mente são apenas caixas de ressonância de tudo que você coloca para dentro.
A gente adoece primeiro as nossas emoções, depois o corpo, depois a mente. A gente se adoece inteira. A gente se adoece mesmo é de hipocrisia, de engolir sapos, de forçar um ‘tudo bem’ quando na verdade ‘coisa alguma está bem’, de travar os dentes num riso quadrado para cumprimentar gente que não suportamos, de fazer de conta que relevou um desagravo verbal, uma violência física, um terrorismo psicológico, um abuso sexual sofrido na infância, ou na adolescência, em nome da ‘harmonia do lar’.
A gente adoece e permanece doente para só piorar depois, por causa dessa absurda leitura de mundo de que se deve perdoar quem nos fez tão grande mal. Não estou falando de estranhos ou pessoas distantes, mas sim, daqueles entes muito íntimos com quem, em nome dos bons costumes, somos impingidas a pedir a benção, a abraçar, a desejar feliz natal e próspero ano novo… ou até mesmo o companheiro com quem nos sentimos obrigadas a fazer sexo, depois de ter sido tratada com desrespeito e boçalidade o dia inteiro.
É por isso que a gente vive doente. Doente de hipocrisia. Não, a gente não é hipócrita. A gente se obriga a ser, porque priorizamos o bem estar e os cuidados para com outros em detrimento do nosso próprio bem estar. Porque fazemos da frustração de nossa vontade um cabedal para a falsa crença de que temos a honra de mantermos em volta do pescoço, laços que mais se parecem com nós-cegos.
Isto é um tipo de autoextermínio psicoemocional e afetivo. Sim, quando a gente deixa de ser quem a gente realmente é, e se espreme para caber numa vida que nos oprime, estamos nos matando com diminutas doses de um veneno, que depois de infectar nossas emoções, adoece nossos órgãos e deprime a nossa mente. Deprime a nossas emoções mais tenras e profundas, infecta até as pulsões de vida da infância, soterra nossas memórias afetivas até que elas entrem colapso e a gente passa a vislumbrar a própria existência como quem sofre por estar condenada não morte, mas à vida.
E assim seguimos um tanto dementadas: exaustas as emoções, exausto o corpo, exausta a mente. Tudo em nós parece comungar com a exaustiva hipocrisia do perdoar para ser abençoada. A cura? A cura está na prática do ‘antes o outro aborrecido por eu dizer não, do que eu aborrecida por dizer sim’. E isso não é egoísmo. Amor próprio não é egoísmo. É se cuidar, se respeitar, se valorizar para ensinar aos outros como merece e deve ser tratada.
Diante do amar a si mesma em primeiro lugar, está a força necessária para não permitir que nos maltratem. Quando reagimos diante daqueles que nos oprimem e nos fazem sofrer; quando nos afastamos dessa pessoa, não estamos sendo egoístas, estamos nos amando, cuidando de nossa saúde emocional, física e mental. Afinal, quem pode fazer isso por nós mesmas?
Essa obrigação social/religiosa que nos impele a perdoar a pessoa que teve a chance de não nos ferir, mas optou conscientemente por ferir, é impor mais um fardo traumático à vítima. Há uma grande diferença entre o perdão terapêutico e o religioso/social. O perdão religioso/social é aquele que nos impõe sob o julgo de continuar a conviver com nossos algozes como se eles nunca tivessem nos machucado. Mas o perdão terapêutico é um processo no qual a gente trabalha as emoções que o trauma causou.
A gente se perdoa por ter absorvido tanta raiva, angustia, ódio, desesperança, lagrimas, tristeza profunda e dor psíquica. A gente se perdoa por entrado num lugar de perdida e morte psicoemocional. E a partir daí a gente passa a liberar um espaço em nossa mente para a interrupção desses sentimentos tão nocivos à nossa vida e às nossas relações afetivas. E tudo bem não conseguir sozinha. Tudo bem precisar de ajuda profissional, pois é possível ter uma vida emocionalmente qualificada, apesar de toda dor sofrida.
Sugestão de leitura: Livro “O Corpo Guarda as Marcas” de Bessel van der Kolk
Texto da escritora, pesquisadora, psicanalista, especialista em prevenção ao suicídio, Clara Dawn Veja a versão em vídeo:
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