“Quando eu tinha 13 anos, alguns vizinhos vieram em nossa casa e me forçaram a deitar no chão. Em seguida, seguraram minhas pernas abertas e uma mulher velha cortou minha genitália: meu clitóris, os lábios interiores e exteriores e, depois disso, minha vagina foi costurada. Foi a pior dor que eu já senti na vida e, naquele momento, eu só queria morrer. Desde este dia cruel, tive grandes problemas para urinar, sentia dores terríveis quando menstruava e, por diversas vezes, pensei que nunca poderia ter uma relação sexual com um homem. Nem que poderia ser mãe”. Este é o depoimento de Inab Abduliah, de 19 anos, nascida em Ali Sabieh, Djibouti, na África, concedido com exclusividade pela Fundação Flor do Deserto (Desert Flower Foundation), sobre o dia em que ela teve sua genitália mutilada e as consequências sofridas por ela ao longo de mais de sete anos.
Poderia ser um roteiro de filme de horror, mas é realidade de mais de 150 milhões de mulheres vivas em todo o mundo. Todas elas, mutiladas. Tiveram o corpo e o direito ao prazer cortados por facas, cacos de vidro ou lâminas caseiras. Sem anestesia. E sem consentimento.
“Eles nos levaram – a mim e outras meninas – e cortaram-nos uma a uma. Foi um verdadeiro trabalho de açougueiro. O sangue estava por toda parte. Eu quase morri de dor e por causa do forte sangramento e, desde este dia, sofria de inflamações e dores terríveis quando precisava ir ao banheiro. Eu tinha apenas 5 anos de idade”, relatou Senait Demisse, 28 anos, de Nazareth, Etiópia, África.
O que é FGM
A mutilação genital feminina (FGM, na sigla em inglês) é uma prática em que parte ou todo o órgão sexual de mulheres e crianças é removido. A chamada infibulação consiste na costura dos lábios vaginais ou do clitóris, feita com pontos ou espinhos; nestes casos, é deixada apenas uma abertura pequena para urina e menstruação, assim como ocorreu com a africana Inab Abduliah. Segundo dados da ONU, pelo menos 15% das meninas mutiladas na África passaram por uma infibulação.
Os casos de mutilação estão concentrados na África (com 28 países praticantes) e no Oriente Médio, mas também há praticantes na Ásia e em comunidades imigrantes na Europa, América do Norte e Austrália. Num estudo realizado pela ONU, descobriu-se que a Europa é moradia de mais de 500 mil meninas mutiladas.
O fim da prática da mutilação genital é uma das metas da ONU em relação à violência contra a mulher. O secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, afirmou que não há nenhuma razão religiosa, de saúde ou de desenvolvimento para mutilar ou cortar uma mulher. Segundo estimativas da organização, 86 milhões de meninas serão mutiladas até 2030, apesar de ser considerada ilegal. O dia 6 de fevereiro foi escolhido como Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, celebrado para denunciar a prática.
“A FGM não é considerada como algo legítimo internacionalmente, por ser violenta, agredir os direitos sexuais das mulheres e não permitir que usufruam do próprio corpo. Inclusive é ilegal em países onde é praticada, como no Egito. Mas há grupos que seguem culturas e religiões nas quais é exercida pelas famílias: muitas vezes pela avó e mães; as meninas que sofrem são muito jovens. É algo que funciona em núcleos familiares e, portanto, levado por diversas gerações”, explica o cientista político e assessor de direitos humanos da Anistia Internacional no Brasil, Maurício Santoro.
A mutilação pode provocar diversos problemas para as vítimas: infecções crônicas, sangramento intermitente, dores na relação sexual, pequenos tumores benignos em nervos, pedras na vesícula e uretra, danos aos rins, infertilidade, entre outros. Em relação às consequências psicológicas, a FGM pode causar ansiedade, medo e sentimentos de humilhação, vergonha e revolta.
Proibida, porém prevalente, a mutilação da genitália feminina chega a ser praticada em 99% das mulheres em países como Djibuti e Somália, na África. As justificativas apontadas são muitas: as famílias acreditam que, mutiladas, as filhas poderão se casar com homens “melhores”, que não as aceitariam não-circuncisadas. Isto porque algumas culturas acreditam que os órgãos femininos são impuros e a prática traz higiene. Com a retirada do clitóris, também acreditam que as possibilidades de acontecerem relações sexuais extraconjugais são diminuídas.
Vida livre e reconstruída
“As mulheres sofrem mutilação física e psicológica. Então, o sentimento é sempre de muita vergonha. Quando migram para outros países e percebem que não é certo sentir dor em relação sexual, descobrem que foram vítimas de mutilação criminosa, portanto podem optar pela reconstrução da vagina. Mas esta decisão é sempre acompanhada de muitos sentimentos conflitantes, pois é difícil perceber o crime numa tradição e ensinamentos arraigados há gerações e gerações”, conta a médica cirurgiã Beatriz Lassance, que trabalhou em Amsterdã, no departamento de cirurgia plástica Onze Lieve Vrouwe Gasthuis, com o médico Refaat Karim, referência em cirurgia ginecológica de reconstrução.
Beatriz participou da operação de várias meninas africanas mutiladas. “O clitóris é um órgão retrátil e, por isso, a amputação é sempre parcial, o que permite a exposição e reposicionamento com cirurgia. Já as estruturas externas são reconstruídas com tecidos adjacentes por enxerto ou retalhos de pele”, explica.
Porém, segundo a médica, as meninas devem passar por intenso trabalho psicológico, sendo esclarecidas e preparadas para as mudanças que a “liberdade” trará antes de realizar o procedimento. “Existe um conflito interno. Mas é visível que, após a cirurgia, elas se sentem mais mulheres”, afirma.
As flores do deserto
A Desert Flower Foundation (Fundação Flor do Deserto) foi fundada no início dos anos 2000 pela ex-top model somaliana Waris Dirie. Assim como 99% das meninas de seu país, Dirie também passou por mutilação genital quando tinha apenas 5 anos. “Aquele dia mudou minha vida para sempre. Depois que me senti um pouco melhor, eu sabia, mesmo sendo uma garotinha, que aquilo foi errado e que iria lutar contra este crime brutal, mesmo sem saber quando, onde e como”, diz Dirie.
Aos 13 anos, a ex-modelo fugiu da pequena comunidade em que vivia, na Sómalia, por causa de um casamento forçado – ela foi vendida pela família em troca de cinco camelos a um homem que teria idade para ser seu avô. Chegando a Londres, trabalhou como faxineira na Embaixada da Somália e no Mc’Donalds, sendo descoberta aos 18 anos pelo fotógrafo Terrence Donovan.
Em uma entrevista à revista Marie Claire, Waris contou sua história, começando, assim, a realizar sua promessa de lutar contra a prática. Em 1996, Waris foi convidada para ser Embaixadora da ONU contra a FGM. Viajando pelo mundo em campanha, reuniu-se com ex-presidentes como Bill Clinton e Michael Gorbachev e ministrou diversas palestras em congressos.
Em 2002, a ex-modelo abriu sua própria fundação – Waris Dirie Foundation – com sede em Viena, na Áustria, para apoiar seu trabalho como ativista. Em 2010, a Fundação foi renomeada como “Desert Flower”, e hoje faz trabalhos em comunidades africanas, além de atender mulheres na Alemanha e possuir um curso de preparação de médicos para a cirurgia de reconstrução, na Holanda com o Dr. Refaat Karim.
“As mulheres jovens, principalmente, sentem que foram vítimas de um crime. Elas sentem que algo lhes foi tirado quando eram crianças. As mais idosas defendem a prática, pois acreditam que isto faz parte de sua cultura ou religião”, conta o diretor da Fundação Flor do Deserto, Walter Lutschinger, que é otimista em relação ao futuro dessas meninas.
Lutschinger acredita que o fim da mutilação está mais próximo do que nunca. “Graças às leis contra a FGM em quase todos os países, inúmeras campanhas, milhares de relatórios divulgados pela mídia, muitas meninas puderam e poderão ser salvas. Nós realmente acreditamos que esse crime vai acabar neste século”, afirma.
Em alguns anos de trabalho, a Fundação já recebeu e-mails de mais de 120 mil mulheres que gostariam de “renascer”, fazendo uma operação de reconstrução e, até mesmo, trabalhando para evitar que outras mulheres sejam mutiladas.
Como é o caso de Senait Demisse, que passou mais de 20 anos sofrendo de dores, operada recentemente pela Fundação Flor do Deserto, na Alemanha. Ela diz que agora se sente livre e que se casará em breve. “Eu contei para minhas amigas sobre a cirurgia e agora todas querem vir para Berlim fazer”, afirma.
Inab Abduliah também foi operada este ano. “Fiquei sabendo sobre o trabalho da Fundação e, após uma conversa, voei a Berlim por conta deles e concordei imediatamente em operar. Agora, minha vida é normal e me sinto uma mulher completa”, contou.
Hoje, a africana trabalha para a Flor do Deserto em seu país, Djibouti. “Trabalho para proteger minhas duas irmãs pequenas e outras garotas da tortura brutal”, a que são submetidas mais de 90% das mulheres de seu país, conta a jovem.
Fonte: Terra