Mudar é inerente à vida. De acordo com a ciência, biologicamente falando, toda célula do corpo humano se regenera em média a cada sete anos. Portanto, somos literalmente novas pessoas a cada sete anos mais ou menos. Mudamos também de idade, de lugares, de pensamentos, de sentimentos, de conceitos, de paradigmas, de representações e de visões de mundo durante toda a nossa vida. A mudança em nós, nos outros, em tudo o que nos cerca e na vida é fato.
Acontece que essas mudanças externas e naturais pelo movimento próprio da vida são mais fáceis – ou menos complicadas de lidarmos – porque não podemos fugir da maioria delas. As maiores complexidades – e, por consequência, as maiores dificuldades – surgem quando falamos das mudanças subjetivas. Elas são mais difíceis porque estão atreladas a muitas representações também subjetivas desde a nossa infância e para realizarmos essas mudanças precisamos derrubar nossas resistências. Se conseguirmos derrubar as resistências – ou parte delas – elas nos levam a novas formas de ser, a novas subjetivações, nos tornando mais conscientes do enfrentamento dos nossos medos, das nossas dores, das nossas angústias e de tudo o que nos prende e tenta evitar que mudemos.
Esse enfrentamento, que é o próprio começo da mudança pode gerar conflitos, crises, dúvidas e, muitas vezes, vontade de permanecer no mesmo lugar. A resistência pode ser, ao mesmo tempo, fator de mudança e de permanência a um mesmo estado. Mas, se conseguirmos ir além, quebrar a resistência – ou que seja pelo menos, parte dela – enfrentar as angústias, as crises, o medo do salto e do novo, os sofrimentos e o caos que podem surgir dessa inicial desestabilização das coisas; o que pode surgir do outro lado, se estivermos mesmos dispostos a “pular o muro” são novos direcionamentos, novas visões e novas possibilidades. Lembro-me aqui de Nietzsche: “Eu vos digo: é preciso, às vezes, ter um pouco de caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante”.
Sempre que o assunto é mudança, não há como deixar de fora a intrínseca relação entre o carvão e o diamante natural, talvez umas das mudanças mais impressionantes encontrada na natureza. O diamante natural é a mudança, a coragem e a persistência do carvão sob a ação do tempo e de fortíssimas e altíssimas pressões e temperaturas. Ambos possuem a mesma composição. O que os difere é a maneira como esta composição está estruturada, ou seja, exatamente a estrutura promovida pela mudança.
Assim somos nós. Se soubermos enfrentar as inúmeras pressões e se soubermos enfrentar e aceitar a mudança pelas altíssimas temperaturas – que podem ser todas as adversidades, dificuldades e adaptações que a vida traz em si e são inerentes a todo ser humano – poderemos nos estruturar de forma tal que o resultado será uma brilhante e belíssima pedra de diamante, que não pode ser riscada nem cortada por nenhum outro mineral ou elemento da natureza, exceto por outro diamante.
Cada um – se assim decidir e escolher – fará suas mudanças à sua forma, no seu tempo e ritmo. Freud já dizia em “O Mal Estar na Civilização” (1996[1927-1931], vol XXI): “Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo”. Sim, mudanças e transformações podem ser uma das muitas maneiras de sermos salvos.
Salvos de que? Ah, Caetano Veloso disse muito bem certa vez: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Dom de Iludir, 1982). Cada um de nós precisa se salvar todos os dias… de nós mesmos, de nossas intempéries, de nossas ilusões, de nossas veladas e não assumidas – às vezes sequer reconhecidas ou até negadas – vitimizações, de nossos conflitos que nos apavoram e de uma melhor maneira de lidarmos com eles, de nossas meias verdades, de nossas inteiras mentiras, de nossos medos, de nossas parcas visões, de nossas considerações enviesadas e de nossas caquéticas certezas atravessadas pelo nebuloso opaco ou obstáculo que impomos aos nossos olhos.
Sim, para o espanto de muitos e a aversão de outros tantos – que os céus os protejam – todos somos seres imperfeitos e, com as devidas graças, insatisfeitos também – não muito, mas o necessário para nossas buscas e descobertas, para novas perspectivas, novos olhares, novos saberes, novos sabores, novos anseios e… mudanças.
Mudar, ir em direção ao novo, à novas formas de ser e de estar no mundo não é tarefa das mais fáceis, mas plenamente possível a quem decide começá-la. O novo, o desconhecido, aquilo que não sabemos – e, por vezes, nem queremos saber, mesmo sabendo – provoca angústia, medo, sofrimento e, não raro dor. Mudar (de verdade) provoca desconforto porque mudar é, entre tantas coisas, mexer e remexer, alterar a ordem, sair da zona de conforto, dar a cara a tapa, desnudar-se, desvendar-se – com a possibilidade de desvendar o outro e o mundo também, desaprender para aprender de novo, ir ao encontro de – na maioria das vezes, ir de encontro a – dúvidas, incertezas, perguntas sem respostas, inesperados, dores passadas e presentes, angústias de ser, estar e existir, lugares escuros dentro e fora de nós e, não obstante, ir de encontro também a muitas dessas mesmas questões em relação aos que convivemos e mantemos algum tipo de vínculo relacional.
Mudar provoca desconforto porque o processo de mudança vai nos “obrigando” a olhar necessariamente para dentro. E olhar para dentro não é tarefa para qualquer um, não. Não mesmo. Quando começamos a olhar para dentro, começamos a perceber que todas as nossas atitudes ou a falta delas terão sempre consequências e começamos a entender que nada nos ajudará – muito pelo contrário – se continuarmos no processo de esquivas, desculpas, justificativas, mentiras e omissões para transferir o peso dessas nossas atitudes e as consequências delas para os ombros de outras pessoas ou para a roda da vida.
Mudar implicar maturidade, maior responsabilidade conosco, com a vida que vivemos, com o outro e com tudo o que nos cerca. Sobretudo, mudar implica sermos capazes – seja de que forma for – de enfrentar e superar todo esse desconforto, toda a inquietude que a angústia do medo provoca – seja medo do novo, medo da aceitação ou da rejeição, medo do vir-a-ser, medo do não vir-a-ser, medo do salto, medo do susto, medo do “outro lado” e até mesmo medo da própria mudança e sermos capazes de transformar toda essa salada em coisas boas para nós, em aprendizados e em crescimento.
Mudanças… transformações… são questões de escolhas e da capacidade ou incapacidade de cada um em promover essas escolhas. São também questões de coragem e ousadia e de um verdadeiro pertencer a si mesmo. Mudanças são as únicas coisas permanentes no mundo. Deixo o pensamento último com Sigmund Freud, novamente em “O Mal Estar na Civilização” (1996[1927-1931], vol XXI): “Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele – o indivíduo, o homem – pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele e, finalmente de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo…” E enfim, parafraseando Clarice, “Mude sempre. Até a última gota. Não mata”.