Nasci sensitiva e assim hei de morrer, muito provavelmente. Nós somos o que somos e não o que quereríamos ser; não te parece? Tens de me aceitar como eu sou visto que só assim eu creio que me possam ter amor.

Em tudo eu vejo sempre os antecedentes, as consequências, as razões e as causas: sou como as crianças que desmancham o brinquedo que as entretém só pelo prazer de saber o que há dentro dele.

Se gostas de mim terás que sofrer com os meus pobres nervos de sensitiva em que as mãos mais delicadas não podem tocar sem fazer estremecer. Sou duma sensibilidade excessiva, aguda, profundíssima. Tudo me faz mal, e a sombra da frieza é para mim já o insuportável sofrimento.

Digo o que penso e, muito simplesmente enuncio fatos, pois que, apesar de poetisa, ligo bem maior importância aos fatos do que às palavras, por bonitas que sejam. Palavras são como as cantigas: leva-as o vento.

De que vale no mundo ser-se inteligente, ser-se artista, ser-se alguém, quando a felicidade é tão simples! Ela existe mais nos seres claros, simples, compreensíveis e por isso a tua noiva de dantes, vale talvez bem mais que a tua noiva de agora, apesar dos versos e de tudo o mais. Ela não seria exigente, eu sou-o muitíssimo. Preciso de toda a vida, de toda a alma, de todos os pensamentos do homem que me tiver. Preciso que ele viva mais da minha vida que da vida dele. Preciso que ele me compreenda, que me adivinhe. A não ser assim, sou criatura para esquecer com a maior das friezas, das crueldades. Eu tenho já feito sofrer tanto! Tenho sido tão má! Tenho feito mal sem me importar porque quando não gosto, sou como as estátuas que são de mármore e não sentem.

Florbela Espanca, in “Correspondência (1920)”

 






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