É quase manhã e eu ainda brigo com os lençóis. Não tenho outra doença: a insónia intercalada por sonos breves e estremunhados. Afinal, durmo como os bichos que persigo por profissão: a salteada vigília de quem sabe que a demasiada ausência do sono pode ser fatal.
Para chamar o sono, recorro ao mesmo expediente que a minha mãe usava para nos adormecer. Recordo a sua historieta preferida, uma lenda da sua terra natal. Era assim que ela contava:
Antigamente, não havia senão noite. E Deus pastoreava as estrelas no céu. Quando lhes dava mais alimento elas engordavam e a sua pança abarrotava de luz. Nesse tempo, todas as estrelas comiam, todas luziam de igual alegria. Os dias ainda não haviam nascido e, por isso, o Tempo caminhava com uma perna só. E tudo era tão lento no infinito firmamento! Até que, no rebanho do pastor, nasceu uma estrela com ganância de ser maior que todas as outras. Essa estrela chamava-se Sol e cedo se apropriou dos pastos celestiais, expulsando para longe as outras estrelas que começaram a definhar.
Pela primeira vez houve estrelas que penaram e, magrinhas, foram engolidas pelo escuro. Mais e mais o Sol ostentava grandeza, vaidoso dos seus domínios e do seu nome tão masculino. Ele, então, se intitulou patrão de todos os astros, assumindo arrogâncias de centro do Universo. Não tardou a proclamar que ele é que tinha criado Deus. O que sucedeu, na verdade, é que, com o Sol, assim soberano e imenso, tinha nascido o Dia. A Noite só se atrevia a aproximar-se quando o Sol, já cansado, se ia deitar. Com o Dia, os homens esqueceram-se dos tempos infinitos em que todas as estrelas brilhavam de igual felicidade. E esqueceram a lição da Noite que sempre tinha sido rainha sem nunca ter que reinar. Esta era a lenda. Quarenta anos mais tarde esse embalo materno não produz efeito. Não tardo a saber se volto para o mato, onde os homens esqueceram todas as lições. Será a minha última caçada. E, de novo, ecoa em mim a primeira de todas as vozes: “E tudo era tão lento no infinito firmamento!”.
Trecho de “O anúncio” – Conto de Mia Couto – Extraído do livro “Confissão da Leoa” – Página 13 – Versão PDF – Google livros