O professor Karnal, em vídeo, traz importante elucidação acerca do perdão nas visões do cristianismo, do budismo e da psicanálise. Logo abaixo você pode assistir o video na íntegra, ou pode ler a transcrição de alguns trechos que nós do Portal Raízes, fizemos especialmente para você. Confira:
O cristianismo e o conceito de perdão, pecado e punição
As religiões monoteístas dão muita importância ao perdão. O cristianismo em particular, definiu a essência do Cristão como ser que perdoa. Na única oração que ensino aos seus discipulos, Jesus disse no Pai Nosso um dos sete pedidos básicos: ‘perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido’. Então, aqui se estabelece na oração do Pai Nosso, um caminho de ida e vinda. Você e eu somos humanos, pecadores decaídos desde o início da nossa história com Adão e Eva, marcados pela infração das normas divinas. Logo, você, necessariamente como eu, estamos imersos no erro, no desvio, no pecado e se eu não te perdoar e você a mim, como eu vou pedir perdão ao Único Ser que não erra, ao Único Ser que é a fonte da perfeição, que é o próprio Deus? Então, Deus está disposto a me perdoar, mas ele exige como contrapartida que eu também perdoe. E perdoe as pessoas ao meu redor. Se eu não fui capaz de ignorar a falta do próximo, como posso pedir a Deus que ignore as minhas?
Nas várias parábolas sobre perdão, como a do Filho Pródigo, o pai perdoa o filho que gastou tudo, e volta e ama. E fala sobre a capacidade de amar. Nas várias parábolas que as faltas aparecem, Jesus sempre insiste que o perdão é essencial.
Nós também temos o episódio da mulher que foi pega em adultério e jogada aos pés de Jesus, e os homens querem apedrejá-la, segundo a Lei de Moisés, mas nisso havia uma armadilha: os fariseus queriam que Jesus dissesse, ou que a Lei de Moisés não era válida, e como tal seria uma blasfêmia imensa, ou que ele dissesse que tinham que apredejá-la, e nesse caso, Jesus, o amoroso, o caridoso, seria pego em contradição. E Jesus disse, ‘essa mulher pecou, quem não tiver pecado que atire a primeira pedra’. Jesus insiste com essa passagem da adúltera,com uma questão que está no Pai Nosso também. Ele insiste que a nossa condição de pecadores universais, constantes, que todos nós estamos imersos no lodo do erro. Obriga que você e eu, nos perdoemos todos, porque senão ninguém existe. Se eu não consigo nem perdoar você que é igual a mim na sua fraqueza, como posso esperar o perdão de Deus que é perfeito? O cristianismo diz que eu tenho que desculpar os outros 70 X 7 (Sermão da Montanha), e esse número não é 490. Esse número é uma metáfora para o infinito: 70 X 7. Eu tenho que perdoar constantemente e quanto mais uma pessoa me ofender, mais eu devo perdoar.
Isso era uma mudança em relação ao sentido que está presente, tanto no código de hammurabi, quanto em partes do antigo testamento, em que a ideia de justiça vem antes da ideia de perdão. Sempre foi presente, mesmo entre cristãos, a ênfase de que justiça preexiste ao perdão e ao amor, no velho ditado medieval de que, quem perdoa o lobo castiga a ovelha.
Então essa lei do talião, ‘olho por olho, dente por dente’está presente no código de hammurabi, está presente no antigo testamento, foi mudada pelo cristianismo, mas muitos cristãos hoje continuam praticando a ideia da lei do talião, de punir quem erra. Mesmo a igreja estabelece como uma obra de misericórdia punir os que erram.
O budismo e o conceito de perdão e pecado
Então, ao lado do perdão universal, que seria necessário, que seria permanente, as religiões trabalham com a convivência de uma ideia, muitas vezes de justiça, que disfarça sentimentos vinganças. Eu não posso te perdoar, porque se eu te perdoar, você vai fazer de novo. (…) Isso é uma contradição muito complicada, entender justiça, amor e perdão entre a ideia de que todos devemos nos perdoar constantemente, e a ideia de que alguns devam ser punidos senão serão um mal social.
Totalmente diferente desse debate entre a lei do talião e perdão, existe a posisão dos budistas, porque no budismo não existe pecado, aliás, não existe um Deus que provoque, no budismo, uma punição ou um benfefício. Se alguém errou comigo, se você mentiu pra mim, se você me agrediu fisicamente, se você me enganou financeiramente, enquanto eu ficar preso, repetindo, insistindo que você é um canalha que me enganou, eu estarei comentendo dois erros: o primeiro é a vaidade de me sentir melhor do que você. Você me enganou, você é um canalha. Eu não, eu sou melhor do que você. O segundo mais complexo, é que isso me liga a esse momento ruim, essa raiva, a esse descontrole que faz com que eu continue errando constantemente, porque eu volto a este momento, eu não sigo adiante, eu me equivoquei, eu continuo naquele instante em que você errou e eu me senti atingido.
E nessa falta de compaixão, nós não avançamos, não progredimos. E não avançando e não progredindo, eu fico em uma roda preso no looping, que é o looping do erro, da culpa do ódio que envenenam a minha existência e fazem com que eu não possa e não consiga evoluir.
A Psicanálise e o perdão
A psicanálise traz uma outra questão: quando eu vejo alguém errando e me perturba muito, é claro que isso pode ser a indignação diante da injustiça ou da violência, mas com frequência, a minha raiva revela quem eu sou, o que eu desejo. Se eu me esforço constantemente para agir certo, e isso é um sacrifício, quando o outro não age certo e parece que não se importa muito com isso, ele revela a minha dor, ele revela o meu limite. Então, eu não como nada que engorde, eu treino duas horas por dia, eu não como doces há anos, eu me privo do álcool, porque eu quero ter um corpo perfeito, isso me dá alegria, mas eu vejo que Fulano se acaba na baba-de-moça, no pudim e na ambrosia, não acorda de madrugada para correr, e pior, parece feliz. Isso é imperdoável. Eu tenho que estabelecer que a minha ideia de sacrifício seja compartilhada por todos. Eu não vou conseguir justificar. E o outro que é feliz não seguindo aquele caminho, este mostra o espelho da minha dor.
Eu que sou fiel a minha esposa, eu que nunca traí, eu que levo uma vida exemplar, vejo que o vizinho não faz isso, ele revela que isso não é tão bom para mim, porque não é uma opção natural, é uma imposição de uma moral. E talvez eu não sigo a moral porque eu seja bom. Talvez eu sigo a moral porque eu seja covarde, porque eu tenho medo, estou preso à tradições e quando eu vejo alguém liberto das tradições, isso me irrita muito.
Isso é muito comum no caso sexual em que o comportamento de uma pessoa, alguma especificidade do comportamento sexual de uma pessoa, acaba me parecendo um gesto de liberdade, liberdade que eu não admito porque eu não me condedi, porque eu não me permiti. E essa liberdade vivida alegremente por outra pessoa, essa me pega, me pega de jeito. E se eu acordo de madrugada e leio tudo que devo ler e se eu nunca me atraso, e vejo alguém acordando mais tarde, se atrasando e não tá nem aí pra mim, e nem aí pra minha alegria de ser ordenado, eu vou me irritar, porque o outro está vivendo um prazer que eu me nego.
Então a psicanálise pede que você preste muita atenção naquilo que você não consegue perdoar, naquilo que é insuperavel para você, naquilo que é complexo para você, porque aí está uma questão importante. Pode estar aí, uma denúncia permanente de que você tem dificuldades com aquele campo. (Transcrição feita até 10min56seg). Veja na íntegra. Vale a pena.