Por: REBECA BEDONE
Eu trabalhava no serviço público de saúde. Ela tinha 18 anos e veio à consulta endocrinológica porque não conseguia engravidar. Não foi preciso muita anamnese para descobrir a causa da sua infertilidade, pois facilmente fiz o diagnóstico. Entretanto, o que deveria ser uma consulta rotineira pareceu-me um enorme desafio: eu precisava entender por que aquela menina já queira ter um filho.
Ela me contou a sua (triste) história — coloquei o adjetivo entre parênteses porque, conforme ela foi me contando aquilo como se fosse a coisa mais normal do mundo, fui sendo espancada por vários socos no estômago.
“Doutora, saí de casa com 13 anos. Fugi. Meu padrasto abusava de mim e da minha irmã mais nova. Minha mãe sabia. Então fui morar com uma tia. Mas minha tia brigava demais comigo. Com 15 anos, conheci meu namorado e ele me chamou para morar com ele. Faz 3 anos que estamos juntos e ele quer ter um filho.”
Eu não tinha nada a ver com isso. Podia interromper a consulta após solicitar os exames e passar-lhe as orientações médicas. Mas não consegui, a lembrança do meu avô me falando “estude para saber” era uma campainha na minha cabeça: mostre a ela que outra vida pode acontecer antes da maternidade!
De um jeito sereno e tentando lhe mostrar uma outra realidade, sugeri que esperasse um pouco para engravidar. Disse-lhe que poderia fazer um curso técnico ou até uma faculdade. Dei exemplos que conhecia: jovens que trabalhavam de dia para pagar os estudos à noite. Falei que é bom para a mulher quando ela é independente e ganha o seu próprio dinheiro. Para dar mais um empurrãozinho, comentei que o namorado poderia acompanhar-lhe nos estudos. Juntos, poderiam ter um futuro melhor e mais estável para, depois, constituírem família.
“Ah, doutora, ele não quer que eu trabalhe. Ele cuida de mim. Meu sonho é realizar o sonho dele que é ser pai.”
Desisti. Como eu poderia aconselhar alguém que vive em uma realidade tão diferente da minha? Fui criada para ser independente e para cuidar do meu próprio nariz, mas nunca me faltou apoio emocional e financeiro. Nunca passei fome e nem precisei trabalhar para pagar meus estudos. Conversar com aquela menina me desanimou. Depois que ela foi embora, me lembrei de tantas outras mulheres que me contaram sobre seus relacionamentos infelizes, alguns até abusivos, mas que não saiam deles porque dependiam financeiramente dos parceiros.
Por outro lado, a independência de uma mulher nem sempre é questão de dinheiro. Para muitas, o que as prendem é a dependência emocional: o medo de ficar sozinha outra vez; o receio de ser divorciada; os filhos; a vergonha de encarar um casamento fracassado.
Tenho uma amiga que foi casada com um homem que regulava até as roupas e os sapatos que ela usava: era uma mulher apagada em tons de bege. Nunca me esqueci o que ela me disse, sorrindo de felicidade, depois que eles se divorciaram: “comprei um scarpin alaranjado!”.
Dia desses, entrei em uma loja de roupas. Enquanto escolhia um vestido, reparei no que disse a moça que saía do provador: “amor, gostei muito dessa blusa!”. Ela se dirigia ao marido, que estava sentado numa poltrona. Mas ele não tinha gostado, e a mulher ficou parecendo uma criança que pedira doce à mãe e ouvira não como resposta.
Saí da loja aliviada, com o vestido que escolhi na sacola. Pensei no meu namorado, um homem maravilhoso que escolhi como companheiro. Concluí que é bom demais amar alguém que respeita minhas escolhas, e o admirei ainda mais por isso. Afinal, eu só conseguiria ter ao meu lado um homem que não tem medo da minha independência.