Imagine que roubaram o seu celular com ameaças e violência e você decide fazer um B.O. Agora imagine que o delegado que pegou o seu caso resolve perguntar onde você foi assaltado, que horas eram e se você é uma pessoa conhecida por trocar de aparelho o tempo todo. Depois ele pergunta se você tem certeza de que o assalto realmente aconteceu ou se você não deu o celular ao bandido por vontade própria. Então você explica que o roubo foi de madrugada e depois de você ter tomado umas cervejas, o delegado decide – por conta própria – que não houve crime algum porque, afinal, você estava na rua, de madrugada e bêbado. Nesse caso, quem pode garantir que você está falando a verdade? Ou que você não queria ser assaltado?
Essa culpabilização da vítima acontece o tempo todo com quem foi estuprada. Mulheres relatam como são recebidas com desconfiança quando resolvem contar suas histórias para alguém. Pessoas perguntam que roupa ela vestia, onde ela estava, que horas eram, se estava bêbada, se já não havia ficado com o estuprador alguma vez, se deu a entender que queria fazer sexo e até se já teve muitos namorados antes. E essas perguntas podem vir de qualquer um.
É verdade que nem todas as denúncias de estupro são verdadeiras. Mas é incontestável que a esmagadora maioria é. Uma pesquisa norte-americana que analisou dez anos de dados concluiu que 9 entre 10 relatos de estupro são verdadeiros. Infelizmente no Brasil não há nenhum estudo similar ao conduzido pelo psicólogo clínico, especialista em violência sexual, David Lisak, mas a semelhança das dificuldades de sobreviventes para acessar a Justiça nos dois países permite uma aproximação. Lá, segundo Lisak, estima-se que no máximo 36% dos estupros são denunciados. Os percentuais são semelhantes no Brasil. Aqui, a notificação é de 35%, segundo estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Uma categoria muito eficiente em abafar casos de estupro é a figura do “homem bem-sucedido”. Basta ser uma personalidade respeitada que dificilmente a denúncia de violência sexual vai colar. Diversas figuras famosas se viram envolvidas em acusações de violência sexual, como os atores Bill Cosby e Arnold Schwarzenegger, os atletas Cristiano Ronaldo, Neymar Jr, Daniel Alves, Robinho, Mike Tyson e Kobe Bryant, e o diretor Woody Allen. O argumento contra pessoas que denunciam celebridades é sempre o mesmo: são indivíduos interesseiros, loucos por fama e dinheiro, que merecem ser demonizados.
A quantidade de sobreviventes que se mantêm caladas é flagrantemente maior do que a de falsas vítimas que se dirigem às delegacias – e, portanto, de homens que são injustamente acusados. O que força o silêncio das vítimas é, em grande parte, a certeza de que serão apontadas como mentirosas e traiçoeiras, até que se prove o contrário – ou, às vezes, mesmo depois disso.
Ironicamente, em uma sociedade guiada por certezas tão inabaláveis quanto irreais sobre o crime de estupro, o comportamento típico de uma pessoa traumatizada é justamente o que faz a vítima ser recebida com desconfiança. No livro-reportagem Missoula: o estupro e o sistema judicial em uma cidade universitária, o jornalista Jon Krakauer (capa) narra o caso de uma mulher estuprada por uma visita que invadiu seu quarto e a violentou na mesma cama em que seu marido dormia. Bastava um grito para o companheiro acordar e ajudá-la, mas ela não reagiu.
Tal comportamento faz parte do instinto de sobrevivência latente nos seres vivos e é explicado em várias vertentes da psicologia e do comportamento humano. Tomadas pelo medo da morte, as vítimas podem, conscientemente ou não, “congelar” para evitar uma violência ainda pior. Na balança social, toda mulher que está sendo vítima de violência sexual deveria gritar, espernear, pedir socorro, reagir violentamente… Entretanto, na verdade, a maioria das vítimas tende a ser imobilizada pelo choque inigualável de ter seus corpos brutalmente invadidos para o gozo de outrem.
Nessa balança social ainda estão os questionamentos sobre quando as vítimas mudam, em seu relato, detalhes do que aconteceu. Porém, a inconsistência narrativa é o padrão em vítimas de traumas. As lembranças traumáticas são processadas sob a forma de imagens e sensações, e não sob uma narrativa verbal.
Na balança social ainda há mais uma terrível crueldade: impor às vítimas o perdão e a convivência com seus abusadores. No Brasil em 70% dos casos , segundo o Ipea, as vítimas são compelidas por familiares e até por si mesmas a interagirem com seus abusadores familiares. Os anos passam e elas podem desenvolver sofrimentos psíquicos capazes de lhes conduzir ao abuso de álcool, drogas, compulsões por comida, sexo, compras, violências e comportamentos destrutivos e autodestrutivos. Toda a sua existência pode ser moldada a partir de uma violência sexual sofrida, não denunciada, não compreendida, não acolhida, não tratada, não ressignificada.
Procure à coordenação da escola
Procure o Conselho Tutular
Procure uma delegacia mais próxima
Procure o CRAS – Centro de Referência de Assistência Social
Procure o CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social
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LIGUE 180
DISQUE 190 – Polícia Militar
APOIO: FUNDAÇÃO ABRINQ
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