A luz emagrecia. Restava só um copo de céu. Em casa do meu cunhado Bartolomeu preparava-se o fim do dia. Ele espreitou a palhota:A mulher, mexedora, agitava as últimas sombras do xipefo. A mulher deitava, mas Bartolomeu estava inquieto. O adormecimento demorou de vir. Lá fora um mocho piava desgraças. A mulher não ouviu o pássaro avisar a morte, já dormia entregue ao corpo. Bartolomeu falou-se: -Vou fazer o chá: talvez é bom para eu garrar maneira de dormir.
O lume estava ainda a arder. Tirou um pau de lenha e soprou nele. Sacudiu dos olhos as migalhas do fogo. Na atrapalhação deixou a lenha acesa cair nas costas da mulher. O grito que ela deu, nunca ninguém ouviu. Não era som de gente, era grito de animal. Voz de hiena, com certeza. Bartolomeu saltou no susto: estou casado com quem, afinal? Uma nóii? Essas mulheres que à noite transformam em animais e circulam a serviço da feitiçaria?
A mulher, na frente da aflição dele, rastejava a sua dor queimada. Como um animal. Raio da minha vida, pensou Bartolomeu. E fugiu de casa. Atravessou a aldeia,rápido, para me contar. Chegou a minha casa, os cães agitaram.
Entrou sem bater, sem licenças. Contou-me o sucedido, assim como agora estou a escrever. Desconfiei, no início. Bêbado, talvez o Bartolomeu trocou as lembranças. Cheirei o hálito da sua queixa. Não arejava bebida.Era verdade, então. Bartolomeu repetia a história duas, três, quatro vezes. Eu ouvia aquilo e pensava: e se minha mulher também é uma igual? Se é uma nóii, também?
Depois de Bartolomeu sair, a ideia me prendia os pensamentos. E se eu, sem saber, vivia com uma mulher-animal? Se lhe amei, então toquei a minha boca com um focinho. Como aceitar desculpas da troca? Lugar de animal é na esteira, algum dia? Bichos vivem e revivem nos currais, para lá dos arames. Se essa mulher, fidaputa, me enganou, fui eu que animalei. Só havia uma maneira de provar se Carlota Gentina, minha mulher, era ou não uma nóii. Era surpreendê-la com um sofrimento, uma dor funda. Olhei em volta e vi a panela com água a ferver. Levantei e reguei o corpo dela com fervuras. Esperei o grito mas não veio. Não veio, mesmo. Ficou assim, muda, chorando sem soltar barulho. Era em silêncio enroscado, ali na esteira. Todo o dia seguinte, não mexeu. Carlota, a coitada, era só um nome deitado. Nome sem pessoa: só um sono demorado no corpo. Sacudi-lhe nos ombros: -Carlota, por que não mexes? Se sofres, por que não gritas?
Mas a morte é uma guerra de enganos. As vitórias são só derrotas adiadas. A vida enquanto tem vontade vai construindo a pessoa. Era isso que Carlota precisava: a mentira de uma vontade. Brinquei de criança para fazer-lhe rir. Saltei como gafanhoto em volta da esteira. Choquei com as latas, entornei o barulho sobre mim. Nada. Os olhos dela estavam amarrados na distância, olhando o lado cego do escuro. Só eu me ria, embrulhado nas panelas. Me levantei, sufocado no riso e saí para estourar gargalhadas loucas lá fora. Gargalhei até cansar. Depois, aos poucos, fiquei vencido por tristezas, remorsos antigos.
Voltei para dentro e pensei que ela havia de gostar ver o dia, elasticar as pernas. Trouxe-lhe para fora. Era tão leve que o sangue dela deveria ser só poeira vermelha. Sentei Carlota virada para o poente. Deixei o frescor tapar o seu corpo. Ali, sentada no quintal, morreu Carlota Gentina, minha mulher. Não notei logo aquela sua morte. Só vi pela lágrima dela que parara nos olhos. Essa lágrima era já água da morte.
Fiquei a olhar a mulher estendida no corpo dela. Olhei os pés, rasgados como o chão da terra. Tanto andaram nos carreiros que ficaram irmãos da areia. Os pé dos mortos são grandes, crescem depois do falecimento. Enquanto media a morte de Carlota eu me duvidava: que doença era aquela sem inchaço nem gemidos? Água quente pode parar assim a idade de uma pessoa? Conclusão que tirei dos pensamentos: Carlota Gentina era um pássaro, desses que perdem voz nos contraventos.
Conto “Asas no chão, brasas no céu”, extraído do livro Vozes Anoitecidas, páginas 77-79, prêmio Camões, 2013,1ª reimpresssão, 2014, Companhia das Letras.
“Coletânea de contos que marcou a estreia do escritor moçambicano Mia Couto na prosa, realidade e ficção ganham novos contornos, misturando de maneira inextrincável”. Do autor de Terra sonâmbula