Festejada pelo percurso narrativo das suas histórias, ambientadas no jeito simples de mulheres e homens, Conceição Evaristo chama a atenção pela construção de personagens e falas eivados de segredos e memórias. Mulher forjada na lida difícil do dia a dia, teve uma infância dura e pobre. Os estudos foram feitos aos trancos e barrancos: o trabalho de empregada doméstica desde os oito anos ou a lavagem e a entrega de trouxas de roupas para as patroas retardaram o seu destino. Mas, guerreira e determinada, tornou-se mestra pela PUC-Rio e doutorou-se em Literatura Comparada pela UFF.
Nas letras, começou colaborando para os históricos “Cadernos Negros”, publicação do Grupo Quilombhoje, de São Paulo, onde escreveu poesias e contos. A memória, no entanto, é o fio condutor dos “causos” que conta: sejam nas relembranças da família, através da mãe (“A voz de minha mãe / Ecoou baixinho / No fundo das cozinhas alheias / debaixo das trouxas / roupagens sujas dos brancos”), como disse no poema “Vozes-Mulheres”, ou nos textos em prosa, espécie de palimpsesto, que acompanha os seus passos como que escrito sobre sua pele negra.
A impressão que se tem é que surge daí o cerne da sua produção textual: em literatura, , da mulher-gozo, da mulher-vida, da mulher-povo. Seu itinerário espiritual literário refaz o caminho da sua ancestralidade feminina, presa na senzala da mente e subscrita nas lágrimas que descem dos olhos das mulheres que enchem seus livros de dor e sensações.
Na prosa há também, e especialmente, a Conceição autora de romances. O mais conhecido deles, “Ponciá Vicêncio” (2003), já traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos, é o marco de sua escrita, talvez urbano-realista. Famoso pelos inúmeros estudos que vem suscitando, “Ponciá Vicêncio” (que está sendo preparado para o cinema pelas mãos do diretor Luiz Antônio Pillar), na mesma linha de “Becos da memória” (2006), reedita o modelo da tradição das narrativas a partir do ponto de vista da crítica social, da visão de costume, mas sob o aspecto do triste legado deixado pela escravidão brasileira, com ênfase na violência e na miséria. Em “Becos da memória”, por exemplo, Conceição assume o papel da mãe-velha — a griot —, através dos corpos-textos embutidos nas falas das mulheres, como as muitas Marias Novas de suas histórias.
Conceição está muito próxima do contundente testemunho de “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus (1914-77), ou do grito das escritoras negras do seu tempo presente, que não se deixam silenciar nunca — sua escrita, rica de imagens e significados, serve para dinamitar metros cúbicos de túneis por onde ela cria atalhos para sua voz respirar.
Selecionamos dois poemas de Conceição Evaristo e um vídeo com a declamação de Vozes-mulheres
Eu-mulher
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
A voz de minha filha
recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
Comentário de Uelinton Farias Alves em O Globo
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