Vozes anoitecidas é uma coletânea de contos do escritor moçambicano Mia Couto. Em sua prosa, realidade e ficção ganham contornos que se misturam de maneira inextricável. Tanto os fatos da história moçambicana surgem recontados em narrativas com textura de sonho, como contrário também se dá, e o que é apresentado como impossível se revela numa descrição precisa de circunstâncias palpáveis. Vozes anoitecidas apresenta pela primeira vez aquela que se converteria na principal marca literária de Mia Couto: a capacidade de ligar, por meio da ficção, instâncias da realidade tidas como opostas.
Consideramos como 10, os melhores começos dos contos que compõem esse livro superlativo. Apostamos que após ler estes começos o leitor não terá dúvida de que deseja ler o restante de cada conto.
Veja:
“O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existem no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes”. (Texto de abertura – página 17).
“Desculpa: mais peregrino que o rio não conheço. As ondas vão, vão nessa ida sem fim. Há quanto tempo a água em esse serviço? Sozinho sobre a velha canoa, Ernesto Timba media a sua vida”. (Os Pássaros de Deus – página 51).
“Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências”. ( Senhor doutor, lhe começo – página 75).
“A luz emagrecia. Restava só um copo de céu”. (Asas no Chão, Brasas no Céu – página 77).
“Sonhei-lhe. Ela estava no quintal, trabalhando no pilão. Pilava sabe o quê? Água. Pilava água. Não, não era milho, nem mapira, nem o quê. Água, grãos do céu”. (Sonhos da Alma acordaram-me do Corpo – página 80).
“Tarde madeira e zinco. Com telhados pendurados, a cacimba a raspar-lhes. Molhadas, as pálpebras da tarde parecem soltar morcegos”. (Saíde, a Lata de Água – página 87).
“A terra estava a conversar com agosto e o velho Josias, parado, escutava. Os meses estão todos no ventre uns dos outros, pensava ele. E adivinhava a chegada dos dias, suas roupas e cores. Sabia da chegada da chuva, pressentia as suas gotas timbilando a areia”. (Lembrança do tempo de antigamente – página 105).
“É uma verdade: os mortos não devem aparecer, saltar a fronteira do mundo deles. Só vêm desorganizar a nossa tristeza. Já sabemos com certeza: o tal desapareceu. Consolamos as viúvas, as lágrimas já deitamos, completas”. (A história dos Aparecidos – página 117).
“A boca, da maneira que nunca pestanejava, parecia inveja de uma hiena. A alma toda de um vivente pode ficar atrás dos dentes?”. (O Patanhoca, Mecânico das Serpentes – página 139).
“A Mississe pusera outra vez aquele alvoroço no coração dele. Estava ali, na chuva da luz, apagando as estrelas. Só ela brilhava, saia e blusa brancas, cabelo desamarrado a pingar nos ombros”. (A Última Noite – página 148).
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